As categorizações são traiçoeiras, porque em muitos casos são subjetivas. Mas podemos afirmar que quando tudo começou nenhuma delas era verdadeiramente gorda. Não tinham o corpo definido como as capas de revista, não tinham o six pack saliente, tinham pernas torneadas, acumulavam gordura em certas regiões corporais, mas estavam muitíssimo longe da obesidade. Eram saudáveis.

No entanto, meteram um objetivo na cabeça e foram atrás dele. Perderam gordura, perderam volume. Ganharam novas formas, o seu corpo mudou. Eram fit. Até aqui, tudo bem. Só que a coisa evoluiu: começaram a pesar comida, fugiam de alimentos calóricos, rejeitavam hidratos de carbono, chegavam a treinar duas vezes por dia — e houve quem chegasse a partir a elíptica de casa, de tanto a usar.

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Publicavam os resultados nas redes sociais e recebiam aplausos virtuais. Afinal, é o que a narrativa cultural nos dá a entender: quanto mais magro, mais feliz. A célebre frase prova isso. Quem nunca ficou feliz ao ouvir a frase: "Estás mais magra, não estás?".

Mas a lógica é falaciosa, dizem-nos estas três mulheres. Se segue influenciadores digitais do universo do fitness, é capaz de as conhecer. Chamam-se Anaísa Gonçalves, Inês Pinto Viana e Carmo Rhodes Sérgio e, juntas, totalizam muitos milhares de seguidores.

Foram três caminhos conturbados, mas que hoje já encontraram alguma paz. É que, apesar das diferenças de cada um dos percursos, optaram pelo mesmo: voltar atrás, em busca do verdadeiro equilíbrio — físico e mental. Com o tempo, concluíram: desenvolveram relações tóxicas, ora com a comida, ora com o treino, ora com ambos. É que por mais que cumprissem os alegados mandamentos do saudável, sentiam-se fracas e cansadas. As três tiveram problemas de saúde. E as três tiveram de recorrer a psicoterapeutas. Hoje, não escondem. A bandeira delas é mesmo essa: transformaram as suas redes sociais e falam  abertamente sobre a prisão do corpo ideal, mostrando que o verdadeiro bem-estar não conjuga com restrições e fundamentalismos.

A história de Anaísa, 27 anos, começa como tantas outras: em 2014, investiu num plano de perda de peso, emagreceu e sentiu-se ótima. “Passei de alguém que não tinha auto-estima para alguém com um corpo em que me sentia bem, em que as roupas, que antes não conseguia usar, passaram a ficar bem", conta. "Isto trouxe-me autoconfiança, não só a nível físico mas também na maneira como me portava com os outros”.

Só que, com o tempo e a exigência, aquilo que era bom transformou-se: “A questão é que a linha que separa o saudável da obsessão é muito ténue e eu ultrapassei-a", confessa.  “Fiquei obcecada em conseguir os resultados, em ter um corpo fit e magro.”

Durante muito tempo, pesava aquilo que comia. “Chegou a um ponto que percebi que não podia passar o resto da vida a pesar comida e deixei de o fazer. Só que arranjei outros mecanismos. Já estava tão dentro de mim, era já tão intrínseco, que conseguia fazer as contas de cabeça.”

Inês Pinto Viana, 32, lembra quando era gozada na escola por ter excesso de peso. “Quando fui para o quinto ano, entrei numa escola pública e comecei a levar dinheiro para comer. Tive, pela primeira vez, o mundo de comida disponível e comecei a comer mais porcaria.”

Isto aconteceu há dez anos, altura em que foi começando a fazer “dietas estúpidas”, como lhe chama. “Não eram equilibradas, um dia comia e no outro não. Eventualmente, comecei a fazer substitutos de refeição, em que em vez de comer uma refeição normal e comia uns batidos hipercalóricos. Nada sustentável a longo prazo.”

Apesar de ter emagrecido pela altura em que entrou na faculdade, a morte do pai desencadeou uma nova vontade de ter o corpo com que sonhava e que tanto valorizava.“Foi esse o ‘trigger’ para dar aso ao que já estava latente em mim: comecei a fixar-me só no meu aspecto, na comida e na magreza e comecei a fazer dieta a séria”, conta. Sem recorrer a especialistas, começou a fazer substitutos de refeição, todos os dias: “Às escondidas da minha mãe. Dizia que almoçava em casa das minhas amigas.”

Começou a perder muito peso. E com isso vieram outros problemas: “Comecei a ter tonturas, a perder cabelo.” É aí que visita uma nutricionista, por ordem da mãe, para ter uma perda de peso equilibrada e controlada por uma especialista. “Pesava 68 quilos, com 1 metro e 73. Disse-lhe que queria chegar aos 60, mas ela disse que o máximo era os 62 quilos.”

Desta consulta com uma “nutricionista super conhecida”, nasceu um plano a que Inês dá o nome de “dieta bolacha Maria”: “Era hipócalórico, tendo em conta que eu não praticava exercício.”

Inês não era fã de desporto. “Preferia fechar a boca, mas não mexer uma palha. Sou muito preguiçosa, mas sou muito disciplinada", diz. Só que entretanto, focada nesta missão de emagrecer, acabou por ceder e comprou uma elíptica para ter em casa, onde treinava três vezes por dia: “Usei tanto que a parti três vezes”, lembra. “Fazia 200 abdominais diários. Cheguei a ter uma marca nas costas de fazer tantos abdominais.” Não conseguia fazer no chão: “Já só era pele e osso e doía quando me deitava num sítio duro.”

Acabou por desenvolver uma anorexia, enquanto foi “aldrabando” o plano da sua nutricionista. Retirou-lhe todos os hidratos, excepto ao pequeno-almoço, e enchia-se de salada. “Eu comia, mas o que eu comia era volume. As minhas refeições eram taças enormes de salada, daquelas que vão para mesa”, conta. “Se fossemos a avaliar o nível energético eram 150 calorias, até porque eu não temperava." Durante quatro anos da sua vida foi assim que se alimentou: “Isto e substitutos de refeição.”

A nutricionista notou. “Estava a pesar 55 quilos. A nutricionista disse-me: ‘A partir de agora, tem mesmo de fazer uma asneira’”, lembra, incentivando-a a fugir das suas restrições. “Queria mudar o meu plano e eu comecei a chorar. Prometi que fazia a asneira. E nunca mais lá pus os pés.”

Hoje quando olha para as fotografias desta altura nota que os seus braços tinham a grossura das suas pernas. “Eu devia ingerir 700 calorias por dia. Um corpo como o meu precisa de 1500. E, ainda por cima, ainda fazia muito exercício.”

“Quanto mais saudável tentava ser, mais doente ficava.”

Carmo Rhodes Sérgio, 29 anos, também é extremamente obstinada e disciplinada. Mete uma coisa na cabeça e foca-se. Para começar a ser regrada na prática do desporto e da alimentação, estes traços de personalidade podem ser uma vantagem. Mas é outro caso que foi levado ao extremo: de 2015 a 2017 pesava tudo o comia, treinava seis vezes por semana — sendo que, duas vezes por semana, treinava duas vezes no mesmo dia. 

“Houve imensas coisas que deixei de comer. Só me presenteava com uma taça de cereais, uma vez por semana, que era a minha cheat meal”, conta. “Pão era para esquecer. Massas, arroz integral só muito de vez em quando. Tudo o que fosse doces, era impensável.”

”Nas semanas em que fazia oito treinos, ficava com tremeliques de frio, aftas enormes, febre, crises de dores de barriga horríveis”

Com uma conta que começou a ser seguida por milhares de pessoas, a pressão que sentia no Instagram impulsionou a sua rigidez. “Tinha de dar 100% em todo o lado e tinha de continuar a alimentar o Instagram. A qualquer sítio que fosse, se houvesse comida e me chegasse a um bolinho, tinha três macacos a cair em cima de mim”, conta.

O seu maior complexo, conta, sempre foram as suas pernas e era nisso que se focava quando treinava. Queria provar a todos que, não, não era uma questão genética, e que, sim, conseguiria tê-las mais finas. Assim, Carmo alimentava-se como se alimenta alguém que vai participar numa prova de bodybuilding. Pesava a comida e analisava os macronutrientes: “Eram 100 gramas de arroz, não podiam ser 99”, conta. “Durante um ano e meio, o meu dia-a-dia alimentar era o que, no espaço de uma semana, os bodybuilders fazem para se preparar para um campeonato.”

Mas a meio tinha crises de compulsão alimentar. “Em dias mais stressantes comia durante uma hora de seguida ou comia a despensa inteira. Ia o que gostava e o que não gostava. Só precisava de mastigar e sentir o corpo a fazer ‘uff’”, lembra. O resultado ficava refletido na balança: “O meu peso começou a fazer o efeito iôiô. Eu estava a ser muito bem acompanhada e os profissionais repararam e aconselharam-me a consultar um psicólogo, porque, além de o meu regime alimentar não ser sustentável a longo prazo, perceberam que eu estava a ter episódios de compulsão alimentar.”

No entanto, pior do que os episódios de voracidade, pior do que a variação de peso, foi o que começou a acontecer com frequência: “Comecei a ficar muitas vezes doente. Nas semanas em que fazia oito treinos, ficava com tremeliques de frio, aftas enormes, febre, crises de dores de barriga horríveis", lembra. “Estava sempre a faltar ao trabalho.”

A sua comunidade de seguidores dava conta das ausências e cobrava. “Desaparecia durante uma semana e, obviamente, quando reaparecia, não tinha o six pack todo definido. Recebia mensagens a perguntarem o que é que se passava, porque é que não estava a treinar. Aquilo começou-me a fazer confusão a nível psicológico.”

A obsessão foi se elevando de tal forma, que os amigos e família notavam. “Toda a gente à minha volta notou: amigas, pais, namorado notavam”, conta. Os episódios de doença sistemática, a compulsão alimentar e a disciplina excessiva geraram preocupação: “Não consegues esconder da família e da pessoa com quem vives o que está a acontecer. Foi um tema de conversa. Falava-se em procurar médicos para percebermos o que é que estava a acontecer.”

É contraditório. Carmo fazia tudo para ser saudável e estava cada vez menos saudável. ”Quanto mais saudável tentava ser, mais doente ficava.” Um dos problemas recorrentes eram as aftas: “Acordava de boca deformada e tinha de levar adrenalina para não fechar a garganta e deixar de respirar. Era grave e tinha de perceber o que é se passava.”

Depois de consultar vários médicos, foram-lhe diagnosticadas duas doenças auto-imunes: Doença de Crohn, ligada ao trato gastrointestinal, e Behçet, uma inflamação crônica dos vasos sanguíneos. Manifestavam-se sempre que Carmo exigia demasiado do seu corpo: “Sempre que puxava mais, o meu corpo não aguentava”, diz. “Puxei, puxei, puxei quando o sistema imunitário era fraco, fraco, fraco.”

Precisou de se afastar do Instagram para se reestabelecer física e psicologicamente. Até porque houve o choque da medicação, que envolve a toma diária de cortisona. “Isto mexe muito com o corpo”, diz. Seguiu o conselho da sua personal trainer e fisiologista e começou a receber acompanhamento: “Fui acompanhada semanalmente por uma psicóloga, que me ajudou a desmistificar muitas coisas.”

Hoje o seu Instagram espelha o seu estilo de vida que continua a incluir exercício físico, mas sem a vergonha de mostrar a subtil barriga do pós-parto. Sim, Carmo acaba de ser mãe.

“Tinha o sistema hormonal de uma pessoa de 60 anos”

Também os corpos de Inês e Anaísa começaram a dar os alertas: “Durante a noite, comecei a ter calores, daqueles em que me tinha de despir. Disse à minha tia, que é médica, e ela ficou em pânico. Mandou-me logo fazer análises”, lembra Inês. Resultado: estava a entrar na menopausa. “Tinha o sistema hormonal de uma pessoa de 60 anos. Só tinha o período porque tomava a pílula.”

 “A minha amenorreia foi excesso de stresse ao corpo, falta de massa gorda e falta de nutrientes. O meu corpo não estava saudável para menstruar.”

Anaísa era tão rígida consigo própria que, a certo ponto, o seu organismo também a avisou: “Andava cansada, não tinha energia nos treinos, dormia mal, nunca ficava satisfeita quando comia, parecia que tinha sempre fome. Estava sempre a pensar em comida, a pensar no que é que podia ser a minha próxima refeição ou não. Era uma relação tóxica.

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Consequentemente, também viu o seu sistema hormonal afetado por uma amenorreia. “Em 2015 tive quase o ano todo sem menstruar”, conta. “A minha amenorreia foi excesso de stresse, falta de massa gorda e falta de nutrientes. O meu corpo não estava saudável para menstruar.”

Inês consultou um endocrinologista que lhe receitou uma dieta para ganhar peso. “Mandava-me comer duas faias de pão com doce e eu cortava a fatia de pão mais fina que conseguisse”, conta. “Foi um processo muito difícil para mim.”

Aceitou que tinha de engordar, mas não era de qualquer forma. Foi para o ginásio e meteu mais um objetivo na cabeça: criar músculo. Só que ela precisava de massa gorda para resolver o seu problema. “Eu alimento-me com um objetivo e não posso. E no mundo do fitness há esse problema. Quem entram entra sempre com um objetivo: perder peso, ganhar músculo, por aí.”

Por esta altura, depois de várias tentativas falhadas, já tinha encontrado uma psicoterapeuta com quem fez match. “A minha psicoterapeuta disse-me que eu tinha de comer aquilo que me apetece-se. Sem planos ou objetivos. Simplesmente comer.”

“O ato de comer trazia tanto transtorno. Passei dez anos a viver presa nisto.”

Carmo, Anaísa e Inês falam na forma como a alimentação, a certo ponto, se tornou numa prisão. Nos três casos, deixavam de ir jantar fora, deixavam de ir sair à noite, estavam sempre a controlar as calorias que ingeriram.

A longo prazo, aquela sensação de um corpo novo que cabe em todas as roupas, deixou de ser suficiente. Veio à luz do dia a insatisfação do resto: “O ato de comer trazia tanto transtorno. Passei dez anos a viver presa nisto”, diz Inês — cujo nome de Instagram é agora "Inês Gets Healthy", onde fala sobre todo o seu percurso. “Era desgastante”, confessa Anaísa, que também nas suas redes sociais partilha a sua história.

“Durante muito tempo, achei que tinha encontrado o equilíbrio, mas estava-me a enganar, porque vivia com base num regime que não era sustentável. Eu estive em regime durante anos.”

É o cansaço de quem abdicou de parte da sua vida em prol de algo que, física e emocionalmente, não compensa. É a prova de que o equilíbrio é frágil e altamente instável.

“Quando era muito magra vivia numa profunda tristeza, afastada de toda a gente. Acabar por nunca sair a pensar que o melhor era ficar em casa para não estragar dieta. É horrível”, conta Inês. ”Tenho 32 anos e sinto que perdi 10 anos em prol de nada.”

Anaísa chegou à mesma conclusão: “Durante muito tempo, achei que tinha encontrado o equilíbrio, mas estava-me a enganar, porque vivia com base num regime que não era sustentável. Eu estive em regime durante anos.”

No verão, estava a ver um vídeo de uma youtuber que está a recuperar de uma anorexia e identificou-se com muito do que ela dizia. “Identifiquei-me com imensas coisas que ela estava a dizer: nunca estar saciada, ter frio, dormir mal. Fez-me pensar: até posso ter um corpo muito magro e fit, mas não estou saudável.”

Pôs um ponto final: “Disse para mim: estou farta, não quero mais isto, não é sustentável’”, lembra. “Só me queria ver livre disto, ter uma relação boa com a comida e alimentar-me como quando era criança: comer quando se tem fome, parar quando não se tem, de forma natural.”

Concluiu que era altura de pôr de lado o “culto excessivo do corpo” e pensar mais na sua saúde, independentemente da sua comunidade de seguidores que, confessa, também é um fator que põe pressão para se estar sempre bem. "No dia em que decidi que isto acabou comecei a ter consultas de psicoterapia. Comecei em agosto e continuo, porque achei mesmo que era preciso."

“Parecia que o meu corpo me estava a pedir comida. E não me pedia frango. Pedia bolachas, massa, arroz. O meu corpo estava a pedir-me energia. Parecia que estava a compensar o facto de ter comido pouco durante tanto tempo.”

Já ganhou seis quilos, seis quilos “bons”, seis quilos “muito felizes", como lhes chama. Nos primeiros dias, relata, comeu tudo o que não tinha comida ao longo destes anos. “Parecia que o meu corpo me estava a pedir comida. E não me pedia frango. Pedia bolachas, massa, arroz. O meu corpo estava a pedir-me energia. Parecia que estava a compensar o facto de ter comido pouco durante tanto tempo.”

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No entanto, é franca: o caminho para a recuperação não é absolutamente sereno. Há dificuldades e obstáculos mentais, fruto de tanto tempo de controlo e restrição. “Não é fácil. Eu estou a desafiar o meu medo e agora estou a enfrentá-lo. No outro dia experimentei umas calças que não me serviam e desatei a chorar”, conta, referindo que aquilo que mais a moveu, ao longo destes anos, foi o receio de voltar a engordar.

Já evitou olhar para fotografias suas de quanto estava muito magra e já fugiu de espelhos, só para não se ver com mais seis quilos. Mas está consciente de que é a dismorfia corporal — ver uma imagem que não corresponde à real —  a falar. “Ao início disse a mim própria que não me ia ver ao espelho, mas depois pensei que tinha de me ver com o meu novo corpo. A aceitar que não sou um pau de virar tripas e que sou uma pessoa normal e saudável.”

Anaísa tem vindo a retirar conclusões importantes, aquelas que hoje partilha com a sua comunidade de seguidores: “É um processo de auto-conhecimento. Muitas vezes isto não tem que ver com a comida. Vai muito além disso.”

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Além disso, está a desmontar uma série de estereótipos, altamente enraizados na sociedade: “Uma pessoa magra não é necessariamente saudável e uma pessoa gorda não é necessariamente pouco saudável. Temos de parar de julgar o livro pela capa”, considera. “Eu não estava saudável, apesar de estar super fit.”

Sente-se muito melhor. “Estou muito mais feliz. Sinto-me muito mais bem disposta para tudo. Comecei a treinar muito melhor. Tenho sempre força e recupero rápido. Ganhei qualidade de vida.”

Está num processo de “retirar peso à comida”, de abandonar os rótulos que lhe foi atribuindo. “Estou naquela fase em que estou à procurar do meu equilíbrio natural. Quero juntar o melhor dos dois mundos: não viver uma prisão mas estar não estar a comer de forma pouco saudável”, diz. “Quero encontrar um meio termo em que esteja a ser saudável e relaxada, ao mesmo tempo.”

Foi difícil para Carmo aceitar que vai viver a vida toda com as condicionantes impostas pelas doenças que lhe foram diagnosticadas. Mas em tudo há lições a retirar. No seu caso, deram-lhe outra perspetiva: “Se não fossem as doenças auto-imunes a porem o travão, seria alguma doença psicológica grave”, conclui, enquanto falamos. “Estou mais tranquila comigo mesma e com os outros. Consegui finalmente encontrar equilíbrio psicológico e físico. Conheço o meu corpo. E respeito-o.”

Antes irritava-se sempre que lia a frase: “Ouve o teu corpo”, mas agora compreende-a. E hoje também entende a célebre frase de Hipócrates: “Nós somos realmente o que comemos", diz.

“A valorização da perda de peso também contribui para a prevalência de transtornos alimentares”

“Há sites de emagrecimento onde se podem encontrar milhares de fotos ‘Antes e Depois’ lado a lado. A história é assim: Em ‘Antes’ o corpo era maior; a pessoa estava infeliz. Em ‘Depois’, o corpo é menor; a pessoa está feliz. Emagrecendo, as pessoas estão a caminho de uma vida melhor”, salienta uma coach da ICF - International Coaching Federation. “Esta é uma narrativa cultural que compramos todos coletivamente. Interpretamos a perda de peso como um sinal de transformação.”

É isto que a narrativa nos vende: magreza é caminho para a felicidade. Mas, como vimos, nem sempre isso se verifica. É uma ideia falsa: “Há evidências crescentes de que a perda de peso intencional não só não funciona, como também é prejudicial. Aproximadamente 95% dos programas intencionais de perda de peso resultam em retorno ou ganho de peso em cinco anos.”

A menstruação durante o período do Holocausto podia até ser um tema tabu, mas influenciava a vida de várias mulheres. Prova disso é um estudo de Hermann Stieve, que revela a forma como o stresse que se vivia em Auschwitz influenciou o funcionamento do sistema reprodutivo feminino. A ausência de menstruação nesta época — amenorreia — decorria da desnutrição, do choque e do stresse que viviam pelo facto de poderem morrer sem chegarem a ter filhos.

O “History Today” faz referência a um argumento de Hannah Arendt, que indica que a menstruação podia ser ainda uma razão de união entre as prisioneiras dos campos de concentração. Isto porque as mulheres mais velhas ajudavam as adolescentes que tinha a sua primeira menstruação (menarca), já que não podiam contar com o apoio da família, muitas vezes já morta.

Ainda que a menstruação salvasse muitas mulheres da violação, uma vez que os homens repudiavam o sangue, nem sempre era desejada, possivelmente por razões de higiene. “Prefiro morrer do que ter sangue a escorrer pelas pernas”, desabafou na altura uma mulher vítima do Holocausto.

“O culto pela perfeição é antigo e criou a ideia de que o magro, esculpido e perfeito é que traz felicidade. As pessoas tentam atingir esta utopia através do seu corpo. Acaba por resultar nesta análise enviesada do que as faz feliz”, considera a psicóloga Dina Guerreiro, em declarações à MAGG.

Frisando que a imagem é importante, salienta também que não são raras as situações em que, em consulta, nota a desilusão de quem chega aos quilos que quer e, mesmo assim, não se sente bem. “É óbvio que o bem-estar corporal é um dos fatores que aumenta o bem-estar. Mas não é o único fator. E isso cria um mal-estar ainda maior quando a pessoa perde peso e não compreende porque é que ainda se sente mal.”

Mas também fala no contrário: “Temos pessoas com excesso de peso que se cuidam bastante, que são bonitas e felizes. Não há necessidade de magreza para serem felizes”, diz. “A nossa imagem não é a única responsável para nos sentirmos bem connosco. O primeiro ingrediente é aceitarmos muitas características nossas, nomeadamente o nosso corpo. Mas aceitar não é resignar. É perceber que somos como somos e trabalharmos aquilo que nos incomoda.”

Além disso, há o potencial de desenvolvimento de transtornos alimentares: seja de bulimia ou anorexia, seja de ortorexia, um problema relacionado com a obsessão do saudável, que leva a outros problemas de saúde. "Com o aumento da prevalência de distúrbios alimentares, também os casos de amenorreia hipotalamica funcional (uma das causas de amenorreia) aumentaram", já havia explicado à MAGG Margarida Santos, médica de medicina geral e familiar e mestre em nutrição clínica. Há muitas causas para este problema, sendo que, "alterações de estilos de vida como stress, excesso de exercício físico, desnutrição" estão entre elas.

“Há uma diferença entre o que é saudável e o que é magro”, considera. “Entram num processo de boicote a elas próprias e depois esta ideia do ‘saudável’ e do ‘em forma’ pode levar a doenças sérias, a problemas de saúde. E a insatisfação continua lá.”  

Depois, há a tal perda de liberdade: “Podem, em prol do corpo, prescindir de momentos importantes para o equilíbrio, como a vida social.” A Psicologia deveria, na opinião da especialista, fazer parte dos processos de perda de peso. ”Acaba por ser uma componente fundamental nestes processos de emagrecimento. Deve perguntar-se o motivo pela qual se deve perder peso, por exemplo”, considera. 

É que “há muito a tendência de se cair no exagero e de se ficar dependente do que se come, do exercício que se faz", diz. "Todos os dias têm de fazer, e se não fazem não se perdoam e já não comem. É uma prisão que existe. E ninguém pode ser livre numa prisão."

Dina Guerreiro refere ainda o perigo das redes sociais. “O grande perigo da perfeição é que a perfeição não existe”, diz Dina Guerreiro. “Todos os corpos que vemos em influenciadores digitais e figuras públicas, que parecem perfeitos, são trabalhados.” Só que a imagem fica na cabeça. “O que acaba por acontecer é que ficam agarradas a esta ideia.”

Além disso, vidas demasiado restritivas e exigentes podem levar a problemas de ansiedade. “A pessoa acaba por desenvolver outro tipo de patologias, nomeadamente a ansiedade, por entrar na busca de algo que nunca acontece. Muitas vezes, não são objetivos tangíveis. “

E, sendo, não são a fórmula para a felicidade. Pelo contrário.

*texto original publicado em 2020.