"Uma história pontualmente verdadeira". É o asterisco que surge no início de cada episódio de "The Great", a nova série de comédia da Hulu, criada por Tony McNamara (realizador de "A Favorita")  e transmitida na plataforma de streaming HBO. Narra a escalada até ao poder da imperatriz russa Catarina, a Grande, misturando factos reais com outros muitíssimo cómicos e ficcionais — com uma boa dose de maldade, álcool e sexo.

Com um guarda-roupa de sonho, diálogos soberbos e um elenco admirável, distorce deliberadamente a história, confundindo personagens e misturando factos. Mas a base do enredo é verdadeira: a história gira em torno do golpe dado pela imperatriz Catarina II para retirar o então imperador Pedro III do trono. Na pele da protagonista está a atriz está Elle Fanning (recentemente fez parte do elenco de "Um Dia de Chuva Em Nova Iorque", de Woody Allen), naquela que é, provavelmente, uma das suas melhores performances até agora.

Por tudo isto, "The Great" faz rir, mas também deixa muitas dúvidas. Afinal, o que é que é real? E o que é que é mentira? É impossível não terminar os dez episódios da temporada sem ir depois estudar mais sobre a monarquia russa, em particular, sobre as figuras de Catarina, a Grande, e de Pedro III — aqui interpretado por Nicholas Hoult (também no elenco do filme "A Favorita"), que transforma o antigo imperador no homem mais abominável e odioso à face da terra, com um Complexo de Édipo gravíssimo.

the great

Vamos então ao que é real e ficcão. Para evitar confusões, vamos referir-nos às personagens da série como Catherine e Peter e às da vida real como Catarina II e Pedro III. Mais uma nota: a HBO tem também disponível a série "Catarina, a Grande", em que a imperatriz é interpretada pela atriz Helen Mirren, girando a história em torno desta figura russa num estilo mais sério e biográfico.

Quando ela casou com Pedro, ele ainda não era imperador

Nascida princesa Sophia Augusta Frederica, a 2 de maio de 1729, em Stettin, na Prússia, onde hoje fica a Polónia, a futura imperatriz aprendeu a falar russo, mudou o nome para Yekaterina Alekseyevna e, com 16 anos (não 19) casou-se, em São Petesburgo, com Charles Peter Ulrich, o novo imperador Pedro III.  A série brinca com todos estes factos: quando Catherine chega à corte russa, Peter, retratado como um ser absolutamente inapto, já era um imperador muito incompetente. Mas há coisas que estão corretas: o casamento foi, de facto, arranjado (pela imperatriz Isabel) e, desde o início, a união foi infeliz.

A personagem Elizabeth foi muito mais importante na história real

Segundo a série, Elizabeth era apenas a tia excêntrica de Peter. Mas a realidade é que ela foi a Imperatriz Isabel, uma importante figura da dinastia russa, responsável por cruciais reformas no país, desde a abolição da pena de morte, à criação do senado ou fundação da universidade de Moscovo. Foi a primeira mulher a ascender ao poder através de um golpe: depôs o imperador Ivan VI, seu primo distante que só esteve no trono um ano. Este homem foi preso e viveu encarcerado durante 23 anos, até ao dia em que Catarina II ordenou a sua morte, por considerar que representava uma ameaça ao seu reinado. Na série, a história surge contada de forma muito diferente: a figura de Ivan VI surge como uma criança, meio-irmão de Peter, mantido preso por Elizabeth, o único facto que é verdadeiro.

Pedro III era mesmo um "bêbado" e "inútil", segundo a imperatriz

A vida deste casal, frequentemente com casos extra-conjugais, é conhecida com tantos pormenores porque Catarina II escrevia muito nos seus diários, descrevendo o marido como um "bêbado", "inútil" ou "idiota". Os adjetivos que parecem ter sido considerados na construção da personagem, porque Peter é, de facto, do mais inapto que há: tem relações sexuais com a mulher do seu melhor amigo (à frente dele, considerando que é tudo muito normal), pede aos seus conselheiros que façam figuras ridículas à frente de toda a gente, ordena assassinatos por impulso, organiza sessões de tortura na forma de circuito com vários postos, é terrível a tomar decisões e altamente influenciável por todos. Adora festas.

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Catarina organizou mesmo um golpe contra o marido

O tema sobre o qual gira a série — o golpe para depor Pedro III — é mesmo real. Porém, não está relatado de forma fidedigna: o acontecimento só se deu em 1762, 18 anos depois de Pedro III e Catarina II terem casado. Com a ajuda da revolta da guarda imperial, ela ocupou o o trono e governou este país até à data da sua morte, tendo-se tornado na governante com o reinado mais longo, que durou um total de 34 anos. Foi líder no desenvolvimento e a modernização da Rússia, desejos que também são retratados na série ficcional.

Três dias depois do acontecimento, Pedro III morre. Apesar de em "The Great" o objetivo do golpe da imperatriz incluir o assassinato do imperador, a realidade é que os historiadores acreditam que esta não esteve diretamente ligada ao crime — diz-se que o antigo imperador foi morto por Alexei Orlov, irmão do amante de Catarina II, Gregório Orlov. Na série existe um importante personagem chamado Orlov, mas ele nunca se relaciona com a imperatriz — é apenas o seu grande conselheiro e surge quase como uma figura assexuada.

Catarina, a Grande preocupava-se com a educação das mulheres

Um dos grandes choques da princesa acabada de chegar à Rússia foi o facto de as mulheres não saberem ler e de, por isso, não se interessarem pela cultura. "As mulheres são para semear, não para ler", diz, na série, Peter a Catherine, logo nos primeiros episódios. Apesar de não se saber se a frase foi, efetivamente, proferida, ela retrata bem a mentalidade da época com bastante precisão. E as expectativas face à imperatriz eram mesmo essas: mais do que ir atrás das suas ambições, a sua obrigação era dar um herdeiro masculino ao trino.

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Em "The Great", o primeiro plano de Catherine é abrir uma escola só para educar mulheres. Mas o imperador não permitiu. Na vida real, a imperatriz importava-se, realmente, com a educação, com especial destaque para as áreas das artes e das ciências. As oportunidades para o sexo feminino na Rússia do século XVII era muito escassas, tanto que, dois anos depois de subir ao trono, Catarina II emite um decreto que estabelece que o Instituto Smolny será frequentado pelas filhas da nobreza, nascendo assim a primeira instituição educacional russa só para mulheres.

Ela conhecia mesmo o Voltaire

Catarina II era uma espécie de mecenas da cultura: era coleccionadora de artes — o Museu Hermitage, que ocupa o Palácio de Inverno, em São Petesburgo, foi criado com a colecção privada da imperatriz, por exemplo — e uma leitora ávida, interessada nas ideias novas vindas da Europa. Correspondia-se frequentemente com intelectuais europeus, como é o caso Diderto e d'Alembert, os dois autores da enciclopédia moderna de 28 volumes publicada em 1772, e que contou também com a colaboração de Rosseau, Montesquieu ou Voltaire, que também surge na série caricaturizado e com quem, na vida real, Catarina II  se correspondeu ao longo de 15 anos.

Ela foi mesmo pioneira num programa de inoculação

Na sequência de um surto de varíola nos empregados da corte, Catherine de "The Great" ouve falar dos resultados da técnica da inoculação (introduzir o vírus ou infecção no corpo para ficar imune), infeta-se à frente de toda a corte. O momento é ficção, mas tem um fundo de verdade: em 1768 muitos países europeus estavam a lutar contra esta doença morta, procurando formas de a prevenir e curar. Thomas Dimsdale, um médico britânico, estava a explorar a técnica da inoculação, no qual infeta, deliberadamente, um paciente com a varíola.  A imperatriz ficou impressionada com o trabalho deste cientista tendo-o convidado para realizar inoculações em si e no seu filho Paul, na altura em que a Rússia estava a ser varrida pela infecção.

O comportamento gerou controvérsia, por ser considerado perigoso. Porém, tanto a imperatriz como o seu filho reagiram bem ao método. Foi a dar o exemplo que Catarina II conseguiu estabelecer um programa de inoculação em massa na Rússia: os historiadores estimam que entre 1780, 20 mil russos tenham sido inoculados e que em 1800, esse número tenha subido para dois milhões.

Dimsdale ganhou um lugar de barão russo. O menino que forneceu a sua vacina para a inoculação da imperatriz também foi recompensado.

Havia mesmo o boato de que ela tinha feito sexo com um cavalo

Apesar de todas as conquistas, sempre houve muitos mitos em torno da imperatriz. Um deles diz respeito à sua morte, que terá sido, alegadamente causada, pelo facto de esta ter tentado ter relações sexuais com um cavalo — a verdade é que ela morreu de um AVC. Este boato é retratado na série, mas de outra forma: descontente com Catherine, uma mulher da corte espalha o boato de que a recém chegada imperatriz tinha tido já sexo com este animal.

A sua vida sexual de Catarina II sempre foi um tema de conversa, sendo que há quem diga que ela era ninfomaníaca, mesmo que na altura fosse normal os monarcas terem vários amantes. No caso de Catarina II a raiz do boato pode ter estado no facto de ela ser mulher e de ter relações com homens muito mais novos. Na História, não é incomum isto acontecer: também Cleópatra ou Ana Bolena foram alvo de rumores em torno das suas vidas sexuais.

Catarina II quase que previu esta necessidade de contar a sua própria história e escreveu as suas próprias memórias. Estes escritos terão sido um "ataque preventivo contra os biógrafos que estavam ansiosos para escrever a história dela", diz a historiadora Monika Greenleaf, citada pela revista "Time".