Para depois não dizerem que os jornalistas são uns mauzões, que descontextualizam as frases, aqui está o que o comentador da SIC Notícias João Maria Jonet disse, a propósito da duração dos frente a frente entre os líderes partidários, na antecâmara das legislativas de 10 de março.

"No pós-25 de Abril, havia debates de quatro horas. E é curioso que agora, que há muito mais escolarização, há muito menos politização, parece que se desistiu de politizar as pessoas. E eu tenho alguma pena disso. Quando eu defendo debates maiores e que vão mais a fundo nos temas é porque eu defendo que nós temos eleitorado para isso e devíamos valorizá-lo dessa maneira. E tratar o eleitorado como estamos a tratar, que é 'vamos lá despachar este debate em 25 minutos que tem de dar o Big Brother', quando nós temos cinco ou seis vezes mais licenciados, mais pessoas que se deviam interessar pelos mais variados temas da sociedade do que tínhamos num momento de enorme pobreza, enorme analfabetismo quando viemos da ditadura, faz-me pouco sentido que os debates sejam tão superficiais como agora".

Várias questões:

  • O "Big Brother" está a ocupar a mesma faixa horária dos debates?
  • O "Big Brother" dá em todos os canais onde são transmitidos os debates (RTP1, SIC, TVI, RTP3, SIC Notícias e CNN Portugal)?
  • Quem vê o "Big Brother" não pode, usando aquela segunda caixinha mágica chamada box, puxar para trás e ver os debates? Ou vice-versa?
  • Uma pessoa que vê o "Big Brother" não pode ser licenciada e interessada "pelos mais variados temas da sociedade" ?
  • Uma pessoa que vê debates tem necessariamente de ser licenciada e interessada "pelos mais variados temas da sociedade" ? Não pode só ter a televisão ligada nos debates como ruído de fundo enquanto está a passar a ferro?

Miscelânia de curiosidades

  • No pós-25 de Abril havia dois canais de televisão. Em 2024, cerca de 90% dos lares portugueses têm televisão por subscrição e uma fatia considerável acesso a internet, plataformas de vídeo, streaming e redes sociais;
  • Segundo o estudo "Os Usos do Tempo de Homens e Mulheres em Portugal", publicado pelo Centro de Estudos para a Intervenção Social, as mulheres gastam, em média 3h14m e os homens 2h19m em trabalho não pago (tarefas domésticas e cuidados à família, que acrescente às horas de trabalho pago);
  • Francisco Monteiro, também conhecido como Zaza, foi o vencedor da última edição do "Big Brother";
  • "Era Uma Vez na Quinta" é o reality show atualmente em exibição na SIC.

Perante estas questões e estas curiosidades, as perguntas que coloco são: quem é que tem tempo para ver um debate de quatro horas? Quem é que, em 2024, consegue ter foco, sobretudo numa era em que as distrações são mais do que muitas, para compreender e digerir 240 minutos de conversa? E será que 4 horas de debate seriam realmente profícuas? E quanto tempo demorariam depois os comentadores a esmiuçar essas 4 horas? 24? 48? Uma semana sem parar?

Concordo que a duração atual dos frente a frente é muito escassa. 60 minutos seria o ideal. Mas a duração do debate entre Pedro Nuno Santos e Luís Montenegro parece-me justa (75 minutos) e, se o modelo for similar ao de 2022, o debate com os oito líderes com assento parlamentar terá a duração de 120 minutos. Tempo mais do que suficiente para, em teoria, se debaterem ideias. Não há ideias? Há truculência, argumentos trauliteiros, conversa de café, etc? A culpa não é, com certeza, de quem vê o "Big Brother".

Ando nestas vidas de acompanhar e ver reality shows desde 2010. O formato existe na televisão portuguesa há 24 anos, tinha João Maria Jonet dois aninhos apenas. E ainda o João Maria andava de fraldas já eu lia eminências pardas, nas colunas dos jornais, na TV, perorarem sobre os reality shows, esses monstros embrutecedores da populaça, esses buracos voyeuristas para a vida alheia, atribuírem a um programa de televisão as culpas de todos os males do mundo.

E o mundo, ao longo de mais de duas décadas, lá foi mudando, evoluindo (creio eu), e em 2024 temos a população mais inteligente, alfabetizada, interessada e opinativa que alguma vez tivemos. Mesmo que essa opinião seja expressa de forma truculenta nas redes sociais. As pessoas interessam-se, as pessoas querem saber, as pessoas questionam. Pode não parecer a uma certa elite, que continua a olhar para a populaça de lencinho perfumado no nariz, mas o povo pensa. Mesmo o povo que vê o "Big Brother", esse também se interessa por política. Não tem é tempo para ver quatro horas de debate multiplicadas por 30 (seriam 120 horas ou 7200 minutos. Fui fazer as contas que nunca fui boa a Matemática). 

Por cá, é isto que temos, meia dúzia de cabecinhas pensadoras a repetirem ad nauseam a mesma lenga-lenga do horror ao reality show, como se não fosse possível conciliar uma ida à Cinemateca, a leitura de um "Submissão" com um espreitar do último "Extra" para ver como está o romance do Zaza e da Márcia (O Zaza é o cunhado da Cristina Ferreira. Dizem por aí que é de uma família bem do Porto. Uma confusão).

Lá fora, em Espanha, nos Estados Unidos e até no Brasil, músicos, políticos, estrelas de cinema, assumem sem qualquer tipo de problemas que veem reality shows. O franchise "The Real Housewives" é guilty pleasure de milhões (incluindo de Meryl Streep, que assumiu ser fã da versão "The Real Housewives of Beverly Hills"). O "Big Brother" brasileiro ponto de partida para discussões nacionais sobre temas como machismo e discriminação e até os fundadores da Crooked Media, uma das maiores empresas de podcasts dos EUA, Jon Favreau, Jon Lovett e Tommy Vietor (todos ex-funcionários importantes de Barack Obama) dedicam tempo de antena à reality TV nos seus vários formatos.

Dito isto, sabem o que era realmente giro? Um reality show com comentadores políticos. Isso eu pagava para ver.