"Farm to fork" é uma expressão que Corinna Hawkes usa várias vezes durante a sua intervenção na IV Conferência "Portugal Saudável". É uma expressão que soa melhor em inglês, mas que não perde significado com a tradução.

Aqui o que importa é exatamente o que acontece no caminho entre a "farm" e o "fork", ou entre o campo e o garfo se quisermos passar para português um problema que é global.

A diretora do Center for Food Policy da Universidade de Londres esteve esta quarta-feira, 10 de abril, em Lisboa para falar sobre a importância do equilíbrio entre nutrição, ambiente e economia. É autora do estudo "A ligação entre sistemas alimentares para benefício mútuo: como combinar a saúde alimentar com os objetivos de política económica e ambiental?", encomendado pela Presidência do Conselho da União Europeia e, em Lisboa, ao participar na conferência organizada no âmbito da Missão Continente, fez questão de lembrar que a forma de pensar a alimentação sofreu profundas transformações.

"Se até aqui o setor alimentar era pensado para alimentar as pessoas e dar lucro a quem produz e vende, agora, questões como a saúde e o ambiente entram na equação", explica.

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Acredita que a mudança não é fácil, mas possível e, em conversa com a MAGG, explica aquilo que cada um de nós pode fazer. Comer menos e reduzir o consumo de carne são dois dos passos mais importantes.

Defende que a obesidade, a má nutrição e as alterações climáticas estão relacionadas e que, por isso, devem ser resolvidas de forma conjunta. Como é isso possível?
Primeiro que tudo, temos que perceber as causas, muitas delas comuns aos três. Por que é que temos alterações climáticas? Porque é que temos altas taxas de obesidade? Por que é que temos pessoas mal nutridas? Uma das principais causas é o facto de o sistema económico estar focado no excesso de consumo. As pessoas compram demais, gastam demais e também comem demais.

E como é que estes três pontos estão relacionados?
Estão relacionados porque têm uma causa comum, esse tal consumo exagerado. Em termos de soluções, temos que pensar global mas, ao mesmo tempo, focados em cada um dos problemas. Precisamos de atacar a obesidade, por exemplo, ao criar novos modelos de negócio que reconheçam que vender mais e mais não é o modelo correto.

Falamos sempre de uma forma global. Mas no dia a dia, há coisas que podemos fazer?
Claro que sim. A primeira de todas é ensinar as crianças a comer de forma saudável e, principalmente, a não comer demais.

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O que é comer demais?
Comer demais depende de cada pessoa. Cada país terá delineado qual o consumo indicado para cada pessoa [em Portugal, de acordo com o Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável, os valores médios de energia aconselhados para adultos saudáveis oscilam entre as 1.800 e as 2.500 calorias], mas a verdade é que tudo depende também do desgaste energético. Cada pessoa deve ser capaz de perceber quais as porções indicadas para a sua idade e o nível de atividade física e deve saber também o que fazer assim que comece a ultrapassar o peso aconselhado. Se à obesidade juntarmos a perspetiva das alterações climáticas, uma das medidas a tomar no imediato é a diminuição do consumo de carne.

Vegetarianismo é o futuro?
Não. O futuro está na redução do consumo de carne. Um dia por semana sem carne, por exemplo, já era ótimo. Nada disto tem que ver com o obrigar as pessoas a ser vegetarianas ou vegans, tem sim que ver com ajudar as pessoas a ter consciência das suas opções. A mudança tem que ser gradual.

Em Portugal temos 13% de pessoas com diabetes, 40% com hipertensão e 60% com obesidade. Como é que chegamos a números destes?
Chegamos a este ponto porque comer demasiado passou a ser normal. Estamos rodeados de comida por todo o lado, é muito fácil, muito acessível e muito difícil de resistir.

Mas é possível baixar estes números?
É possível, mas requer uma mudança económica e cultural. São mudanças globais, mas está provado que pequenas mudanças na forma como os alimentos são apresentados podem ajudar a mudança de hábitos. No supermercado, por exemplo, podemos pôr a comida pouco saudável no fundo da loja e dar destaque a outros produtos. Podemos também taxar as bebidas açucaradas, diminuir a publicidade dirigida a crianças e promover cada vez mais que toda a comida à venda tenha o semáforo nutricional, que alerta para os níveis de sal, açúcar e gordura. No fundo, é fazer com que comer de forma pouco saudável seja algo que nenhum de nós quer fazer.

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Perdemos as nossas raízes gastronómicas?
A realidade inglesa é bem diferente da portuguesa. Vocês, sim, têm um passado um pouco mais saudável. Mas o problema é global e tem muito a ver com os snacks, com o fast food, com a comida pré-preparada. As pessoas já não pensam sobre o que estão a comer, comem e pronto.

Ao mesmo tempo, temos 821 milhões de pessoas (números da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura) com fome em todo o mundo.
Fome é algo que acontece quando as pessoas não têm acesso a comida. Mas mesmo na Europa, temos muitas pessoas a viver numa insegurança sobre a comida que conseguem comer naquele dia, naquela semana, naquele mês. O que acontece nesses casos? As pessoas compram comida mais barata e que seja mais calórica e comida congelada para que dure mais. Peixe e vegetais tendem a ficar fora da dieta do dia a dia. Significa isto que as pessoas podem na mesma estar a comer demasiado, mas estarem inseguras quanto à quantidade de comida que conseguem ter e, principalmente, negligenciando a qualidade.

Mas mesmo quando quando queremos comer saudável, temos que estar atentos aos limites. Basta ver o que aconteceu com a quinoa, por exemplo, cujo consumo desenfreado fez com que o preço disparasse e que esgotasse nos seus países de origem.
A quinoa é um bom exemplo. O aumento do consumo acabou por beneficiar quem já tinha uma alimentação privilegiada, ou seja, as pessoas que tinham acesso a outro tipo de alimentos. Já aquelas que a comiam desde sempre, até como fonte de proteína, passaram a ter menos acesso ao produto.

O segredo é comer local?
É inevitável termos que comer alimentos globalizados, chamemos-lhe assim, mas uma das soluções é mesmo comer o mais local possível. É também uma forma de reconectar com as origens dos produtos. Voltar a saber de onde a comida vem pode ajudar-nos a ter mais consciência sobre o que escolhemos comer.