Nos últimos anos, milhares de pessoas por todo o Mundo têm recorrido a fármacos como o Ozempic, indicado para doentes com diabetes tipo 2, para emagrecer. O resultado? Uma carência acentuada destes medicamentos, sentida por aqueles que realmente precisam deles.

Medicação da diabetes para a obesidade é uma "arma potente" mas não é para todos, alertam especialistas
Medicação da diabetes para a obesidade é uma "arma potente" mas não é para todos, alertam especialistas
Ver artigo

Débora, mãe de Patrícia (nomes fictícios, já que pediu anonimato), é apenas um dos casos. Sofria, entre outras condições de saúde, de diabetes tipo 2. A medicação começou a escassear e Débora acabou por morrer em dezembro do ano passado. Agora, a filha procura justiça para o que aconteceu — e respostas.

Débora tinha doença de Cushing, um tumor na hipófise (glândula na base do cérebro) que controla todo o organismo, e "diabetes muito, muito descontrolados". Há uns anos, quando surgiu "um medicamento novo e inovador", a médica do centro de saúde receitou-lho. Devia administrar Trulicity uma vez por semana.

"10% da população portuguesa sofre de diabetes, mas mais de 50% dos portugueses tem excesso de peso"

Este fármaco é, segundo nos explicou a filha de Débora, "da mesma classe do Ozempic". O Ozempic tem sido ligado a celebridades como as Kardashians ou Oprah Winfrey, que o usaram para conseguirem perdas de peso significativas.

Ozempic é o nome comercial dado ao medicamento semaglutido, "indicado, em Portugal e na União Europeia, para o tratamento de doentes adultos com diabetes mellitus tipo 2 insuficientemente controlada", pode ler-se na Infarmed, Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, I.P.

Medicamentos como Ozempic e Trulicity são utilizados através de uma injeção subcutânea para o tratamento de doentes com diabetes tipo 2. Porém, por contribuírem para a perda de peso de forma significativa, têm estado a ser utilizados com essa mesma finalidade.

"Atuam diretamente no pâncreas e aumentam a quantidade de insulina produzida, diminuem o apetite ao comunicar na base deste mecanismo no cérebro, e ainda, ao atrasar o esvaziamento de estômago, emitem um estímulo no centro de saciedade do cérebro. As pessoas sentem-se mais saciadas e com menos fome", explicou o médico Mário Rui Mascarenhas à MAGG, em entrevista, em abril do ano passado.

"10% da população portuguesa sofre de diabetes, mas mais de 50% dos portugueses tem excesso de peso. Sempre que há escassez no mercado, a prioridade tem de ser dada aos doentes com diabetes", defendeu o médico endocrinologista e presidente da Sociedade Portuguesa de Endocrinologia, Diabetes e Metabolismo João Jácome de Castro, em dezembro, em entrevista à MAGG.

"Qualquer médico podia prescrever o Ozempic à pessoa, mesmo sem ser diabética. Ao haver uma procura maior, os doentes passaram para o Trulicity, que também é tomado por algumas pessoas com o mesmo objetivo", conta-nos Patrícia.

"Começou a ser muito difícil encontrar o medicamento. Tinha de reservar em dez farmácias ao mesmo tempo, sempre a pedir esclarecimentos e a alertar. Ao aperceber-se da dificuldade, a minha mãe começou a poupar no medicamento. Não nos dizia nada, para reduzir a nossa ansiedade", continua.

"A morte da minha mãe foi por negligência, não tenho dúvidas nenhumas"

"Em setembro de 2023, após três semanas sem tomar o medicamento, a minha mãe começou a sentir-se muito mal", prosseguiu a mulher de 52 anos. Débora foi levada para o Hospital de Penafiel e internada em cardiologia, pois os médicos suspeitavam de problemas cardíacos, "mas deram-lhe alta".

Cinco dias depois, Débora foi novamente internada, agora na ala dos cuidados intensivos, "porque o coração estava a falhar completamente". "Esteve ligada às máquinas, implantaram-lhe um pacemaker e ela nunca mais foi a mesma", relata a filha. Débora morreu em dezembro, aos 76 anos.

"A morte da minha mãe foi por negligência, não tenho dúvidas nenhumas. Eles deixaram a minha mãe sozinha. O médico demorou 10 horas a chegar à beira dela. Ela não tinha capacidade de comunicar", crê Patrícia, que assegura: "Eu não vou desistir enquanto não perceber o porquê de a minha mãe ter morrido da maneira que morreu".

"Um farmacêutico alertou-me que, além de ter vantagens para diabéticos, o Trulicity tinha vantagens a nível cardiovascular. Fiz uma relação imediatamente com o problema cardíaco da minha mãe", afirma, em entrevista à MAGG, efetuando uma ponte entre as circunstâncias.

"Quero perceber até que ponto um diabético ter de parar imediatamente o tratamento por o medicamento não estar disponível nas farmácias pode levar a danos graves e até à morte", explica, dizendo estar, neste momento, "numa 'guerra' com o Serviço Nacional de Saúde".

"Os diabéticos não podem ser menos importantes do que os obesos com dinheiro"

Patrícia exige explicações. "O que foi feito por quem tem competências para que o medicamento chegasse àqueles que efetivamente o devem tomar e não para a obesidade?", questiona. "Acredito que a história da minha mãe se repete pelo País fora. Deve estar a morrer muita gente em silêncio", aponta.

Patrícia garante à MAGG que já requisitou estudos, falou com médicos, contactou o laboratório responsável pela produção do fármaco e tentou chegar ao ministro da Saúde, Manuel Pizarro, bem como ao Infarmed, "para perceber o que se estava a passar — e as respostas foram sempre muito vagas".

"O que é preciso fazer para que um medicamento indicado aos diabéticos chegue aos diabéticos? É uma questão de saúde pública. Suspeito que o coração da minha mãe falhou por esse motivo. Isto é muito duro e, no fundo, sinto-me responsável", desabafa Patrícia, natural do Porto.

"Após a morte da minha mãe, deixei de ter acesso à área pessoal no portal SNS24, onde tinha muita informação importante, receitas, exames, consultas... Quero continuar a ter acesso à informação. Estou à espera do processo clínico da mãe, para tentar perceber o que efetivamente se passou em setembro. Apenas ontem (8 de março) soube a causa da morte da minha mãe. Morreu de uma infeção generalizada", disse à MAGG.

"O medicamento continua a não estar disponível nas farmácias", reforça. "Eu sei que eles são gigantes, mas nós somos gente e não podemos deixar que nos roubem a dignidade. Os diabéticos não podem ser menos importantes do que os obesos com dinheiro", conclui.