Temos aqui no prédio uma vizinha que tem uma doença mental. Toda a gente mais ou menos que caga para ela. Ela é invisível e só não é inaudível porque, nos picos de euforia da sua condição, canta desenfreadamente, seja de dia ou de noite. Vive sozinha, nunca lhe vi um amigo, um familiar, nada, apenas as assistentes sociais que a visitam regularmente para atestar a sua sanidade física e as condições em que vive.

Sabemos que, em tempos, há-de ter sido aquilo que, sobranceiramente, consideramos "normal" porque, nas suas noites de cantorias, fá-lo num inglês perfeito. E também porque, nos momentos em que não é acometida por comportamentos mais "bizarros", é de uma educação exímia. Mas como é doente, e tem comportamentos "estranhos" todos (todos, todos, todos, eu incluída) nos habituámos a fingir que ela não existe. Ou que a sua existência é incómoda. É uma merda. Eu sou uma merda. Somos todos uma merda.

Outro dia, a Paula (nome fictício) ficou trancada fora de casa. E eu só sei disto porque, depois de a ter visto a rondar a porta, sentada horas a fio na escada, no pátio, a entrar e sair do prédio, lhe fui perguntar se tinha ficado trancada fora de casa. Tinha. Sem telemóvel. Sem nada. Tinha esquecido a chave dentro de casa. E não estou a escrever isto para assinalar a minha virtude, a minha caridade. Estou a escrever isto para revelar a profunda vergonha que sinto.

Porque eu fiz isto depois de a Paula ter passado 24 horas ao relento. 24 horas num sítio cheio de gente, que passou por ela (como eu passei) e a ignorou. Todos, todos, todos, sem exceção, cagámos nela.

Emprestei-lhe o telemóvel, ligou para a associação que lhe arrenda a casa (e que faz um trabalho absolutamente incrível em Lisboa). "Tens fome? Queres água?". Fui buscar água e comida. E quando enchia pela segunda vez a garrafa, porque a Paula não bebia água há um dia, senti nojo de mim. Nojo de de mim enquanto pessoa igual a tantas outras, que entra e sai de casa com o focinho enfiado no telemóvel, que solta um 'bom dia' a correr aos vizinhos, que não foi capaz de perguntar mais cedo "precisas de alguma coisa?". E nojo de nós, deste coletivo que tantas ferramentas tem, tanto dinheiro, como nunca houve na nossa História, e que permite que os menos fortes sejam esquecidos.

O nosso esclarecimento, a nossa inteligência, todo este manancial de informação, a foto do Instagram com a bandeira da Ucrânia. Os GoFundMe para onde damos 20€ com um só clique, os abaixo-assinados para todas as causas e mais algumas. Toda a causa e mais alguma merece a nossa solidariedade, desde que estejamos higienicamente separados da miséria, da pobreza, da doença, da guerra, por um ecrã. Que hipócrita que sou. Que hipócritas que somos. Que nojo. Que merda.

Podia dizer que, a partir de hoje, vou cagar menos para os que me rodeiam. Mas todos sabemos que estaria a mentir. O que eu sei, o que eu tenho a certeza, é que todos, todos, todos, ricos ou pobres, famosos ou anónimos, estamos a um passo, a um passo apenas, de nos tornarmos Paula. Nós nunca sabemos que voltas é que a nossa vida vai dar, se um dia nos vamos encontrar nesse sítio que nos torna transparentes, indesejáveis, um incómodo. Não sei se, um dia, toda a gente vai cagar para mim como eu, no dia em que devia ter feito alguma coisa, caguei para a Paula.

É uma tristeza. Como coletivo, somos uma tristeza.