Numa altura em que o debate sobre a saúde mental dos atletas ganha cada vez mais importância, Vanessa Fernandes abre o coração na curta-metragem "72 Horas Antes" e revela que alinhou participar nos Jogos Olímpicos de Pequim, em 2008, já com uma depressão.

O testemunho, contado na primeira pessoa, é arrebatador. Em "72 Horas Antes", um documentário da autoria de Lígia Gonçalves e Miguel C. Saraiva, a atleta olímpica fala sobre o impacto negativo que o desporto teve na sua vida — situação da qual muitos não se aperceberam (ou não quiseram aperceber).

Como a atleta Simone Biles desistiu dos Jogos Olímpicos (e abriu o diálogo sobre saúde mental)
Como a atleta Simone Biles desistiu dos Jogos Olímpicos (e abriu o diálogo sobre saúde mental)
Ver artigo

A depressão, bulimia e internamento são alguns dos pontos abordados pela atleta natural de Perosinho, Vila Nova de Gaia, que admite que os distúrbios alimentares começaram quando deixou de comer a pensar nos segundos que podia ganhar em prova. "O meu objetivo era sempre o mesmo, ganhar e ser a melhor", recordou. "Na altura [Pequim2008], tinha episódios bulímicos constantes. Comia compulsivamente e vomitava", continuou no relato, assumindo que estes eram os comportamentos não de um atleta, mas "de alguém que está doente".

Vanessa Fernandes tinha apenas 16 anos quando se mudou para o Centro de Alto Rendimento de Rio Maior. Na altura, a carga de treinos era tão grande que teve dificuldades em continuar a seguir os estudos porque chegava às aulas já cansada. Vanessa treinava das 6h às 20h e acabou por não conseguir concluir o 10.º ano de escolaridade.

Vanessa revela ter entrado "no modo perfeito de máquina de competição"

"Tem de se aniquilar a parte de criança que temos para sermos mais adultos e termos resultados. Por exemplo, quando disseram que era bom perder algum peso para ser melhor na corrida, foi super doloroso para a minha mãe ver que não estava a comer a comida dela. O meu treinador chegou a ligar ao meu pai a perguntar o que é que fazíamos ao fim de semana, quando vinha a casa, porque parecia uma velha. 'Não fazemos nada, descansa'”, conta o documentário.

Vanessa Fernandes sentia o peso da vitória que lhe era imposto. A 18 de agosto de 2008, chegou o dia para o qual tinha trabalhado afincadamente. "Entrei num espetáculo. Mergulhei, dentro de água, ainda me lembro do cheiro [...] dentro da guerra, da arena, e, lá dentro, é lutar até ao fim. Entras no modo perfeito de máquina de competição. Na transição para a corrida, nem me chateei em ir para a frente, quase quis uma desculpa. Ia buscar uma medalha, porque eu quase já tinha excluído a hipótese de ganhar", relata, referindo-se aos Jogos Olímpicos Pequim2008 — prova da qual saiu com uma medalha de prata.

Durante a prova, diziam-lhe que era preciso "sofrer, sofrer, sofrer". "Ainda querem que eu dê mais?", questionava, afirmando agora que essas palavras lhe davam uma certa "raiva" e uma enorme vontade de se libertar. "Era como se me tivesse deixado ser escrava do meu próprio sucesso. Para mim, já estava a ser muito e eu diluí-me na obtenção desse resultado", afirma Vanessa Fernandes.

Vários anos depois de se afastar das competições, sem muitos terem percebido o porquê, Vanessa Fernandes explica tudo.

Após o relato, muitos atletas mostraram identificar-se com a história. Entre eles encontra-se Fernando Pimenta. "Mais uma dura e cruel revelação de mais uma atleta que foi ao limite das suas forças para nos representar, desta vez da Vanessa Fernandes. Tínhamos muito para dizer isso. Na maioria das suas palavras revejo alguns dos meus sentimentos/pensamentos. Como sempre digo: de fora, somos toosa muito campeões, depois dentro da arena, poucos sobrevivem!", escreveu o atleta de canoagem português numa publicação partilhada esta quarta-feira, 27 de outubro, na rede social Instagram.