Madonna é Madonna, será sempre Madonna. É inquestionável o seu lugar na História da música, da cultura pop, na História da Humanidade. A norte-americana de 65 anos podia estar sentadinha num canto, a bater palminhas, enquanto o resto da equipa cantava, dançava e entretinha que, mesmo assim, já valia a pena.

A questão não é essa.

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A questão é: é aceitável que se comece um concerto com 90 minutos de atraso, sem qualquer explicação? É aceitável que pessoas que pagaram entre 40€ e 300€ nem sequer tenham o direito de protestar quando, a uma segunda-feira à noite, um espectáculo que é suposto começar às 20h30 (vá, 21 horas, que tendo Madonna já vivido em Portugal, sabe que meia hora de atraso é chegar adiantado), comece às 22 horas? Não nos parece.

É aceitável que uma pessoa esteja cool, na boa e que, depois de uma hora e meia à seca, esteja com espírito para gritar "holiiiiiidaaaaaaaaaay! Celeeeebraaaaaateeee!" ? Nós não estávamos e, embora sendo admiradores de Madonna, saímos do concerto a meio. O tédio que é ter de estar uma hora e meia, depois de um dia de trabalho, à espera de um espectáculo para o qual - equipa técnica, staff da Altice Arena, público inclusive - toda a gente trabalhou e se organizou para começar a horas, tira a tesão a qualquer pessoa que não tenha torrentes de adrenalina a correr-lhe nas veias.

O que vimos foi bonito? Foi, sim senhora. Podia ser muito melhor? Depende da expectativa. Que Madonna nunca foi uma cantora espectacular já toda a gente sabe e ninguém está à espera de grandes momentos de perícia vocal. Há muito playback, o que é perfeitamente compreensível tendo em conta que este é, mais do que um concerto, um espectáculo visual. Os bailarinos da rainha da pop fazem 80% do trabalho, e são efetivamente assombrosos. Quase dá vontade de ver Celebration Tour só com o corpo de baile, de preferência numa sala mais pequena, com lugares sentados e sem 500 telemóveis a bloquearem-nos o campo de visão.

Sabemos que toda a gente quer gravar para a posteridade aquele que é, provavelmente, o último concerto de Madonna. Nós também o fizemos. Mas talvez devêssemos, coletivamente, estabelecer algumas regras sobre isso. Um código de ética qualquer, que ditasse um tempo limite em que, de braços alçados e telemóvel ao alto, tentando guardar na nossa nuvenzinha umas imagens roscofes de um concerto que não estamos mesmo a ver, estamos a impedir a pessoa que está atrás de nós de ter uma experiência bonita.

O grande legado musical e artístico de Madonna está nos anos 80 e 90. Eu, as pessoas da minha geração e mais velhos até, tivemos todos o privilégio de viver numa era sem telemóveis. Não que os telemóveis sejam o demónio, que não são, mas transformam por completo e empobrecem a experiência de um espectáculo ao vivo.

E ontem dei por mim, enquanto Madonna cantava "Vogue" e entrava na era "Erotica", a querer bater em toda a gente que estava à minha volta, ou pelo menos implorar-lhes que baixassem a porra das asas e guardassem o telemóvel. Porque é completamente antagónico desfrutar de um concerto, sobretudo quando há tanta memória, tanta sensação, tanta bagagem associada, tanto de nós e da História naquelas músicas, com a porcaria de um ecrã à frente. Porque nada será igual, nem mesmo se for captado com o melhor iPhone, àquilo que os nossos olhos virem e a nossa memória guardar.

Uma questão final, que tem de servir de reflexão coletiva antes que a música se torne um privilégio apenas acessível a uma minoria. Os bilhetes dos lugares onde ficámos, na plateia A, custavam 250€*. É um terço de o salário mínimo nacional. O preço dos bilhetes para os concertos de Madonna oscilava entre os 40€ (balcão II) e os 300€ (balcão 1), excluindo pacotes VIP e afins, que esses iam até aos milhares de euros.

Ironicamente, quem comprou bilhetes a 40€ deve de certeza ter tido uma melhor experiência visual do que nós que, não tendo 1,90m, o que vimos foi através dos ecrãs de palco (que eram demasiado pequenos, de empalidecer de vergonha quando comparados, por exemplo, com os que Rosalía usou no seu concerto na Altice Arena, em novembro de 2022) e dos telemóveis das outras pessoas.

A discussão em torno dos bilhetes de espectáculos, cujos valores dispararam após a pandemia, é global. A especulação, os sites de revenda de ingressos, o mercado negro e a falta de algum tipo de regulação que estabeleça um teto limite, faz com que artistas e promotores se sintam totalmente à vontade para cobrar o que lhes apetece por um espectáculo, fazendo divisões completamente ridículas em zonas das salas, dando-lhes um nome diferente e cobrando mais por isso, mesmo que o valor não signifique uma melhor experiência. No final de outubro, o artista porto-riquenho Bad Bunny foi duramente criticado por cobrar 150 dólares (cerca de 140€) pelos bilhetes mais baratos para os concertos da digressão Most Wanted, que começa em 2024.

O concerto de Madonna desta segunda-feira, 6 de novembro, estava praticamente esgotado. O desta terça-feira, 7, está bem composto, mas ainda há bilhetes disponíveis. No entanto, a moldura humana dos concertos, devido aos preços, vai-se necessariamente alterando. Tenho notado isso nos festivais pós-pandemia. Muitos turistas, muitos expatriados, cada vez menos portugueses de classe média. A música ao vivo, os grandes espectáculos, são cada vez mais um privilégio inacessível à maioria da população. Numa altura em que a crise da habitação, as subidas das taxas de juros, o aumento do custo de vida, estrangula as carteiras das famílias, para quem é que é a cultura? Cada vez mais, apenas para privilegiados.

* A MAGG esteve no concerto de Madonna a convite da promotora Ritmos e Blues