Atenção: este texto contém spoilers sobre "Indiana Jones e o Marcador do Destino". Se não quer saber detalhes sobre o filme, por favor não continue a ler.

Quando somos crianças, os nossos pais são os nossos heróis. São capazes de tudo, são invencíveis, são maiores do que a vida. São Indiana Jones.

O meu pai tem demência. Ainda está lúcido, por vezes, mas já não é o mesmo. Extraordinariamente, se lhe pusermos um livro à frente, sobretudo se o tema for História, lê atentamente. O mesmo se passa com filmes "de guerra" ou de aventura. Coisa extraordinária, muitas vezes cruel, o nosso cérebro. Devo ao meu pai o gosto pela História, pelos filmes, e devo ao meu pai Indiana Jones. Eu não era a criança mais amiga das brincadeiras ao ar livre por isso, quase todos os dias, havia uma cassete VHS nova para ver. Não sei com que idade vi pela primeira vez um filme Indiana Jones, mas sei que foi "Indiana Jones e o Templo Perdido" (o que gosto menos dos cinco, de resto).

"Indiana Jones e o Marcador do Destino"

Sei praticamente de cor os três primeiros filmes, em particular "Indiana Jones e a Grande Cruzada". O meu pai adorava ler livros sobre guerras, em particular sobre a II Guerra Mundial, e a cruzada de Indy e do seu pai, Henry (interpretado pelo saudoso Sean Connery) contra o Mal (sendo que, em três dos cinco filmes, os nazis são o inimigo a abater) foi, ao longo dos anos, um elo de ligação com ele. Uma ligação estranha, como a do próprio Indy com o pai, feita mais de silêncios do que de palavras. Ainda assim, uma ligação de pai e filho.

"Indiana Jones e o Marcador do Destino", que chega às salas de cinema esta quinta-feira, 29 de junho, é o adeus de Harrison Ford à personagem que o tornou maior do que a vida, que o catapultou para o estrelato, que fez dele um dos atores mais amados da história do cinema, companheiro de sonhos e aventuras de várias gerações.

Aos 81 anos, volta para uma última aventura, de chapéu na cabeça e chicote na mão, mais uma vez para salvar o Mundo das forças do Mal. Desta vez, está acompanhado da afilhada Helena (Phoebe Waller-Bridge), também ela arqueóloga e com um feitiozinho que bem podia ser filha do padrinho (não é, calma).

O filme de James Mangold não nos deixa fazer o luto de Indy e isso dói para quem o guarda com carinho no coração.

A tecnologia usada no filme realizado por James Mangold para recriar as cenas do passado, onde vemos um Indiana Jones muito mais jovem, é absolutamente assombrosa. É difícil perceber que não é Harrison Ford que está ali, mas uma criação artificial do ator, tais são as semelhanças com o Harrison Ford de "Os Salteadores da Arca Perdida". Mas, em 1981, Ford tinha 39 anos. Agora tem 81. E, por muito impressionados que fiquemos com estes incríveis recursos ao serviço da Sétima Arte, é impossível não ter uma sensação fantasmagórica, espectral. Um vazio. Como se o passado não fosse um flashback, mas sim uma elegia.

Indiana Jones e o Marcador do Destino
O filme mostra uma recriação de Indiana Jones mais novo créditos: ©2022 Lucasfilm Ltd. & TM. All Rights Reserved.

"Indiana Jones e o Marcador do Destino" respeita religiosamente a estrutura dos filmes "Indiana Jones": passado, regresso ao presente, longas cenas de ação, heróis em apuros, mais cenas de ação, resolução e epílogo feliz, mas com uma ponta solta para uma possível continuação.

No entanto, sabemos que não é humanamente viável que Indiana Jones de carne e osso continue a existir. Harrison Ford está no final da vida, embora todos desejemos que viva ainda muitos anos, mas há limites para aquilo que um corpo e uma cabeça de 81 anos consegue fazer. O filme de James Mangold não nos deixa fazer o luto de Indy e isso dói para quem o guarda com carinho no coração.

"Indiana Jones e o Marcador do Destino" é cruel porque deixa uma porta entreaberta, e seria preferível que acabasse mesmo ou que o testemunho fosse passado a Helena, com toda a polémica (e, talvez mesmo a impossibilidade) que daí adviria (embora não consiga ver melhor atriz do que Phoebe Waller-Bridge para interpretar uma versão feminina de Indiana Jones).

Talvez as novas gerações não tenham estes heróis, ou não lhes deem a importância que nós damos. Talvez a enorme oferta de conteúdo crie, paradoxalmente, um distanciamento em relação às personagens da ficção. Mas para nós que crescemos num tempo em que não havia internet, em que os filmes, as séries, a música eram os mesmos para toda a gente, essa ligação é quase umbilical. E custa dizer adeus a quem, ao longo de quatro décadas, fez praticamente parte da nossa família.

Até já, Indy. Até sempre.