Antes de passarmos à análise do primeiro episódio da nova novela da TVI, protagonizada por Matilde Reymão e José Condessa, temos uma queixa: não faz sentido anunciar no "Jornal Nacional" com pompa e circunstância a estreia de um novo formato de ficção e depois enfiar logo de seguida um direto especial "Big Brother - Desafio Final" só para mostrar uma discussão entre três marmanjos que nem porrada deu. Pior: depois disso, ainda sujeitar os telespectadores a meia dúzia de minutos de "Festa é Festa".
Posto isto, há que elogiar o facto de a novela escrita por Maria João Costa ter uma protagonista com o cabelo encaracolado. Parece um pormenor mas não é, tendo em conta que a ditadura do cabelo liso ainda vigora no pequeno ecrã (da ficção ao entretenimento, passando pela informação, onde é raríssimo ver uma mulher com o cabelo com ondulação natural).
"A TVI voltou aos bons velhos tempos!", achámos nós nos primeiros segundos de "Cacau". Paisagens lindas, músicas incríveis, os cenários tropicais de Itacaré que nos dão vontade de apanhar o primeiro avião para a Bahia e só voltar depois do Carnaval. O problema são os próximos 456 episódios, em que quase toda a ação se passa dentro de estúdio e adeus palmeiras, coqueiros e mar azul de água cristalina. Com isso podemos bem.
Então vamos lá explicar do que se trata "Cacau". Há uma jovem chamada Cacau (Matilde Reymão), que é filha de Filó (Sofia Nicholson) e Quim (Paulo Calatré), um casal de portugueses emigrantes na Bahia, que toma conta da fazenda dos Vaz Pereira, e que se veste como se tivesse saído de uma aldeia perdida na beira em 1950. Cacau tem uma irmã, Anita (Catarina Nifo), aspirante a influencer e piranha.
O sonho de Cacau é fazer o melhor chocolate do mundo e ir estudar "para o exterior". Só que, enquanto não lhe sai a lotaria, entretém-se a fazer chocolate e a surfar com os melhores amigos, Pitty (Ludy Guimarães) e Guto (Vitor Britto).
Do lado de cá do Atlântico estão os maus da fita. O menos mau, Justino Vaz Pereira (António Capelo), tem uma mulher que é uma víbora do piorio. Simone Vaz Pereira marca o regresso de Alexandra Lencastre aos grandes papéis, que é como quem diz, ao papel de vilã que é má como as cobras. Com o bónus de percebermos, logo desde a primeira contracena, que nos vamos rir às gargalhadas com a dupla Simone - Soraia (Paula Neves). Soraia é empregada dos Vaz Pereira e faz-nos lembrar vagamente quando Paula Neves envergava farda de empregada em "Anjo Selvagem".
E se dúvidas houvesse sobre como esta dupla tem tudo para ser icónica, topem este diálogo:
- Soraiaaaa, Soraiaaaa, Ó SORAIAAAAAAAA!
- Gritou, senhora?
Épico.
De volta a Itacaré, vamos já despachar o elefante na sala. Cacau e Anita são filhas de emigrantes portugueses, mas nasceram no Brasil. No entanto, vá-se lá saber porquê, as duas irmãs falam o que podemos designar por "bratuga". Meio sotaque brasileiro, meio sotaque tuga. Tudo misturado, sem nexo nenhum. Numa discussão, Cacau acusa a irmã de falsear sotaque para ter mais "seguimores" nas redes sociais. "Até sotaque brasileiro você adotou para enganar melhor o povo. A gente teve educação portuguesa, Anita!", diz Cacau.
Ora vamos lá desmontar isto. Se Cacau e Anita nasceram no Brasil e não foram fechadas numa cave nem conviveram exclusivamente com os pais, por que raio falam português com sotaque de Portugal e não, como seria expectável, português com sotaque do Brasil? E o que raio será ter "educação portuguesa"? Não se percebe.
Adiante. Joaquim vai da Bahia até Sintra falar com o patrão da fazenda que, sabemos entretanto, é alvo de disputa e que está prestes a ser comprada por Marco Figueroa (Diogo Amaral). Pelos vistos, o chocolate não dá dinheiro e os Vaz Pereira estão em vias de despachar aquele paraíso para ser transformado num hotel. Mas Quim não vai falar de negócios com o patrão, não senhor. Vai largar-lhe uma bomba no colo, ou melhor, a própria filha (que afinal não é filha). Novela que se preze tem de ter uma filha bastarda que, neste caso, é Cacau. Uma história dramática do passado, de amores proibidos, bebés que eram para não ter nascido, mas afinal nasceram, e madrastas más.
Não sabemos o que esperava a maioria dos telespectadores, mas nós estávamos à espera de ver mais José Condessa. O ator português que, em 2023, brilhou na série da Netflix "Rabo de Peixe" e no filme de Pedro Almodóvar "Estranha Forma de Vida", mal aparece na estreia de "Cacau" e, quando aparece, está a pedalar. E não está a pedalar em tronco nu, nem com uns calções curtos, nem a sorrir de forma marota como nas 4633 fotos com que nos vai presenteando nas redes sociais. Está só a pedalar, a pedalar das Azenhas do Mar para algures na zona oeste. Já percebemos que o nosso herói, Tiago Saavedra (José Condessa), além de se dar mal com os pais, é um desportista.
O desaparecimento de Chiquinha (Christine Fernandes), a verdadeira mãe de Cacau, é um dos grandes mistérios desta novela, bem como a morte do irmão de Tiago, um tema tabu (até ver) na família Saavedra. Mistério ou melhor, misticismo, ou melhor ainda, magia, são os dotes de Cacau. Quando criança, a jovem aspirante a chocolateira metia sementes de cacau e malaguetas na terra, na esperança que dali nascesse cacau picante.
Pois tanto tentou que, um certo dia, uma criança apanha um fruto do cacaueiro, prova e - milagre! - as sementes são picantes! Grande agitação na fazenda, Cacau em delírio, diz que é um milagre. Não queremos ser desmancha prazeres nem quebrar o mood da malta, mas alguém lhes devia dizer que chocolate picante já existe. É só juntar chocolate e picante.
Apesar de não termos visto José Condessa em tronco nu, apesar do sotaque estranho de Cacau e Anita, apesar do "milagre" da fruta picante, há que elogiar a verosimilhança do acidente de Simone (Alexandra Lencastre) e Justino (António Capelo).
A ficção portuguesa, em particular as novelas, têm muitas vezes cenas de ação que, de tão mal concretizadas, resultam ridículas. Mas esta em particular não só está brilhantemente executada em termos técnicos, como é elevada pelo excelente desempenho destes dois monstros da representação.
