Vânia Ramos, de 38 anos, passou uma infância muito difícil. Perdeu a mãe com 16 anos, vítima de um cancro no colo do útero, e logo após ficou a viver na rua, uma vez que o senhorio a mandou abandonar a casa, chegando ao ponto de ter de se alimentar de comida de gatos deixada pelas pessoas. "Costumo às vezes dizer que a Vânia são duas pessoas. Uma com uma infância muito triste, e outra com uma alegria tremenda", contou Vânia no "Dois às 10" de quarta-feira, 29 de março.

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Vânia vivia com a mãe e com o padrasto, que tiveram uma filha em conjunto. Com apenas 3 anos, a criança morreu atropelada, e Vânia assistiu. "Tive uma irmã, morreu à minha frente, atropelada. Eu tinha 8 anos e ela tinha 3, e o meu padrasto e a minha mãe estavam presentes no momento, mas estavam de costas e não viram, só eu é que vi". Confessa que a imagem nunca mais lhe saiu da cabeça.

Foi no dia deste acidente que sentiu que a sua vida começou a mudar. "Eu não estava no papel do meu padrasto, mas um filho morre à nossa frente, e naquele momento, o olhar que ele me deu quando ela estava deitada na estrada, eu penso sempre, todos os dias, (...) que acredito que ele pense que eu é que devia estar no lugar dela. Nunca lhe perguntei, nunca o questionei sobre isso, mas acredito que, na cabeça dele, poderia ter passado isso, que quem deveria lá estar era eu e não a minha irmã."

Nessa altura, Vânia conta que o padrasto se tornou uma pessoa fria. "A partir daí ele começou a tratar-me como se eu não existisse. Não sei se era a tristeza dele. O sonho dele era ser pai, e ele perdeu a filha dele". E o mesmo se passou com a mãe. "A minha mãe deixou de querer viver, não tinha vontade para nada. (...) Eu senti que a minha mãe não estava bem, ela não era a minha mãe. Não se preocupava se eu estava bem, porque eu presenciei tudo, no meio disto tudo eu era uma criança. Eu vi aquilo tudo à minha frente", relatou Vânia.

Face à perda da filha mais nova, a mãe tornou-se uma pessoa muito fria, e o padrasto "entregou-se à bebida". "A entrega, para ele foi, 'vou-me dedicar a beber, a divertir-me'. Às vezes eu apanhava vergonhas, vinha da escola, e as pessoas chamavam-me a dizer que ele estava caído nos bares. Ele bebia para esquecer".

Mais tarde, com 14 anos, a mãe disse-lhe que "tinha uma notícia muito triste", e para se preparar, porque iria morrer. "Eu tenho um cancro no colo do útero. Então prepara-te, vais ficar sem mim também". Foi assim que a mãe de Vânia deu a notícia à filha, que a partir daí começou a viver para conseguir dar-lhe tudo. "Tive de fazer umas trocas na minha vida, porque o meu padrasto não trabalhava, não havia dinheiro, não dava para tudo, e eu tive de decidir, 'vou trabalhar, e vou ajudar-te mãe, não te vou deixar faltar nada, mas ela não tomava as medicações".

Dois anos depois, com apenas 16 anos, Vânia perdeu a mãe, o padrasto abandonou-a, e ficou sem casa, vendo-se forçada a viver na rua. "O meu padrasto foi um pai num momento da minha vida. Não posso reclamar dele, cuidou bem de mim, tratou bem de mim, mas não era a filha dele. No momento em que eu senti que não era a filha dele foi na morte da minha mãe, porque em nenhum momento ele pensou, 'eu vou dar a mão a esta criança'. Sinto um pouco de mágoa com isso, mas consegui-lo-ia perdoar porque era uma pessoa muito especial, e que sofreu também, sofremos muito."

O senhorio mandou a jovem abandonar a casa."E eu saí, com apenas um saco verde na mão, com alguma roupa, e vim dormir sete dias da minha vida aqui, porque fiquei sozinha", diz a mulher, referindo-se a um banco de rua perto de uma praia. "À noite era muito duro. Às vezes não comia, outras vezes afastava os gatos para comer."

Vânia confessa que sentiu desespero, pois via as pessoas a deixarem comida aos gatos de rua, à noite, e pensava "será que ninguém vê que eu estou aqui sentada há tantos dias?". Nesta época ficou sem trabalho, pois devido à situação, o patrão do café onde trabalhava aconselhou-a a ir para uma instituição. "Eu nem lhe contei que estava na rua. Houve pessoas que não souberam, mas também não me procuraram. As pessoas que foram ao funeral enterraram naquele momento a minha mãe, como se me tivessem enterrado a mim também. Acabou-se, ninguém mais sabe da Vânia", afirmou.

Chegou a pedir ajuda ao pai, por telefone, enquanto ainda estava a viver na rua, mas foi rejeitada. "Teve um dia na minha vida que encontrei 50 cêntimos, e liguei ao meu pai, que nunca tirei o número da minha cabeça, e disse-lhe 'pai, tenho fome', e ele disse-me 'o pai vai aí ajudar-te, vou levar-te comida'. Até hoje, eu tenho 38 anos, e ele nunca apareceu. É muito duro. Como eu costumo dizer, foram sete dias a chorar de manhã à noite. Nunca se cura".

Face a tudo o que viveu, Vânia admite que guarda feridas profundas. "Senti sempre muita raiva. Mas vou buscar forças, a minha mãe sempre me disse para ter força, e ela não foi uma mulher forte. Sempre me preparou para partir. Ela todos os dias da vida dizia que me ia deixar. A minha mãe foi o único elo de amor que eu tive na minha vida".

Contudo, com o tempo a sua história acabou por se desenrolar para uma vida mais feliz. "A família foi algo que eu adquiri em adulta. Nunca tive uma família em pequena, só a minha mãe".

Conheceu o marido, Costa, num baile, e "foi amor à primeira vista". Tiveram três filhas, Laura, Maria Clara, e a Katlin, e abriram um negócio juntos, um snack-bar. "Hoje sou a pessoa mais feliz do mundo. Amo o que faço, tenho um excelente marido. Eu digo-lhe sempre 'quero morrer velhinha ao teu lado. Não sabemos o dia de amanhã, mas serei sempre grata à tua pessoa'. Sou-lhe grata pela família que construímos, por aquilo que somos hoje. Além do pai das minhas filhas, além do amor da minha vida, é um grande ser humano", contou Vânia.