Nunca o mercado da beleza foi tão popular. E nunca criar uma maquilhagem artística e elaborada foi tão fácil. No meio destes dois pólos estão as redes sociais e as influenciadoras digitais, que enriquecem com patrocínios e lançamentos de produto. O exponente máximo deste fenómeno será Kylie Jenner: com 21 anos, a empresária foi considerada pela "Forbes" a bilionária mais jovem de 2019. A sua fortuna vem sobretudo de um sítio: da Kylie Cosmetics, atual Kylie Beauty. O nome foi alterado na sequência da venda de metade da empresa por 600 milhões de dólares (aproximadamente 545 milhões de euros).

Bloggers, instagrammers e youtubers mostram-se de cara limpa para a irem começando a preencher. No final, apresentam-se com uma pele irrepreensível, uma forma de cara perfeita, um jogo de sombras mágico, uns lábios maiores e perfeitamente coloridos. Muitas delas acabam por lançar as suas marcas. Os seguidores idolatram-nas e seguem-lhes os passos.

Em termos de ação, isto não passa só por imitar as suas maquilhagens — passa também por adquirir os produtos que estas usam, lançam e fazem esgotar à velocidade da luz. Kylie Jenner, a empresária do clã Kardashian, é outra vez exemplo disso mesmo: o seu conjunto Lip Kits esgotou dez minutos depois de ser colocado à venda.

Fezes de rato, urina de cavalo, metais pesados e super cola. O lado negro da indústria dos cosméticos falsos

Desta necessidade que transforma batons, sombras e máscaras de pestanas em bens essenciais, nasce o lado menos glamoroso e brilhante do mundo da cosmética: falamos das imitações que montam um gigantesco mercado negro, que vive sobretudo na China e que daí se espalha por todo o mundo. Os números deixam ver a dimensão alcançada por este submundo: o comércio global de produtos falsificados atingiu 461 mil milhões de dólares anuais (cerca de 420 mil milhões de euros), o que representa 3,3% do comércio mundial.

Plataformas de venda conhecidas, como a gigante Amazon ou eBay, legimitizam este negócio: os produtos falsos são colocados à venda nestes sites e geram lucro a estas empresas na forma de comissões. Toda a gente quer o último modelo ao preço mais reduzido possível. Mas, é como se diz: não há almoços grátis.

Dos lábios colados aos olhos com infeções. As causas e as consequências da maquilhagem falsa

É sobre isso que fala o primeiro episódio da série da Netflix "Broken", que descreve os laboratórios clandestinos em que estes produtos são criados como "imundos". Lewis Rice, chefe da equipa de segurança global da marca Estée Lauder, viajou até à China com uma equipa que o levou aos sítios onde os produtos do mercado negro são produzidos.

"Não há condições, não há controlo de qualidade", refere num vídeo da americana "Refinery 29". "Ninguém comeria lá, quanto mais fazer produtos de cosmética para distribuição."

Bactérias nocivas, fezes de rato, urina de cavalo, cianeto, mercúrio ou chumbo foram já detetados na composição de produtos, avança o documentário da Netflix.

Nas suas embalagens e cores, eles parecem ser idênticos aos originais. Só que a composição não só é diferente, como altamente tóxica. Vejamos: os metais pesados estão presentes em quantidades absurdas, sendo altamente nocivos para a saúde do cérebro ou reprodutiva — sendo potencialmente cancerígenos.

”Cosméticos falsificados testaram positivo para agentes cancerígenos conhecidos, como arsénio e berílio, testaram positivo para metais pesados, como chumbo e mercúrio”, diz a dermatologista Whitney P. Bowe à Netflix.

Já várias notícias deram conta do mesmo. E não é de agora. Em agosto de 2018, a BBC noticiava que centenas de milhares de quilos de produtos de contrafação tinham sido descobertos por conselhos da Local Government Association, entre os quais imitações das marcas MAC, Chanel e Benefit. Alertaram para o facto de esses produtos poderem ter "efeitos tóxicos no sistema nervoso, sistema digestivo e imunológico, pulmões, rins, pele e olhos".

Kylie Jenner ultrapassa Zuckerberg e é a bilionária mais jovem de 2019
Kylie Jenner ultrapassa Zuckerberg e é a bilionária mais jovem de 2019
Ver artigo

Também os efeitos a curto prazo desta "epidemia" da cosmética de contrafação podem ser desastrosos. Vejamos o caso de Khue Nong, um dos testemunhos do documentário da Netflix: comprou no eBay um dos tais Lip Kits de Kylie Jenner, porque todos os amigos e influenciadores digitais diziam maravilhas destes batons. Só que aquele que esta jovem comprou — por menos dinheiro — não era verdadeiro. Foi da pior forma que ela percebeu isto: ao aplicar o produto nos lábios, estes ficaram colados.

Tentava separá-los, mas doía. Os meus lábios estavam a queimar. Eu estava a enlouquecer e a entrar em pânico. O meu primeiro instinto foi ir ao Google.”

Depois da pesquisa, percebeu: de forma a obter o mesmo brilho que o produto da empresária, o produto falso inclui super-cola na sua constituição. Com manteiga, Nong conseguiu separar os lábios.

Esta é uma consequência que surge no imediato. Há outras que aparecem mais subtil e gradualmente, como explicou a dermatologista. Whitney P. Bowe começou a reparar que, há cerca de cinco anos, houve um aumento de determinados problemas de pele. “Reparei no aumento de um tipo de erupção cutânea específica, chamada dermatite de contacto. Também notei um aumento de infeções na pele de adultos, de infeções bacterianas, como terçolhos ou conjuntivites, começaram a ser mais comuns nas minhas consultas”, diz a dermatologista à plataforma de streaming.

Os médicos foram em busca da causa. Começaram a explorar estes produtos, para averiguar se poderiam ser a raiz do problema. E notaram logo que algo de errado se passava com eles: a consistência, a textura e até o cheiro eram estranhos. “Foi a primeira coisa que me alertou para o facto de estes produtos poderem ser falsificações”, disse Bowe na entrevista à Netflix.

A blogger de beleza Tanya Arguelles passou por isto. Encontrou uma sombra para olhos popular no mercado de rua em Los Angeles (por menos 45€ face ao original) e perguntou-se se seria tão bom quanto o outro. Foi para casa e fez um frente a frente entre os dois produtos. No dia seguinte, acordou com comichão e ardor nos olhos.

“Nos primeiros 45 minutos, percebi que era uma infeção nos olhos. Não conseguia pôr as minhas lentes de contacto”, disse à blogger à CBS News. “Olhei para as filmagens e vi que aquele olho era o que tinha usado na falsificação. Com toda a certeza.”

A youtuber inglesa Maya Gibson passou pelo mesmo: após retirar produtos falsos da sua cara, sentiu de imediato as consequências: acne, ardor, lábios parcialmente queimados. Tudo isto num espaço de dez minutos. "Depois de experimentar a maquilhagem e de retirá-la da cara, o meu rosto passou-se absolutamente", diz numa reportagem da britânica ITV.

Hoje em dia é muito mais complicado saber se um produto é falsificado ou não. As embalagens são cada vez mais sofisticadas e idênticas ao produto original e, por outro lado, nas compras online não vemos, tocamos ou cheiramos o produto.

Como diz o documentário da Netflix, a solução passa por comprar produtos às marcas oficiais ou a revendedores oficiais. Influenciadoras também têm um papel: devem informar os seus seguidores para os perigos das falsificações e fomentar compras conscientes. Inventamos uma nova máxima: mais vale ter menos, mas em bom.

(artigo publicado em janeiro de 2020)