O que começou por ser um veículo para expor o seu trabalho enquanto fotógrafa e um modo de partilhar e guardar memórias dos filhos com a família e amigos, tornou-se em algo mais sério e com um alcance muito maior. Catarina Macedo Ferreira, de 32 anos, natural de Lisboa, é autora do blogue "Ties" e posteriormente criou a página de Instagram que atualmente já conta com mais de 33 mil seguidores. Partilha diariamente assuntos do seu dia a dia, bem como fotos dos quatro filhos de 3, 5, 8 e 9 anos.

"Sempre tive blogues desde miúda e quando fui mãe pela primeira vez aos 22 anos fazia sentido para mim partilhar com a minha família e amigos aquilo que estava a viver. Como sou de fotografia e das belas artes, existia aquela parte estética que precisava de expor em algum sítio", conta Catarina Macedo Ferreira à MAGG.

Atualmente, tanto no blogue como no Instagram, muitas das publicações que partilha são de fotos dos filhos. Com o crescimento das redes sociais, Catarina Macedo Ferreira admite que também a exposição dos filhos começou a ser maior. Algo que sempre lhes foi dito e explicado, à medida que foram crescendo.

"Eles sabem que às vezes viajamos para hotéis que nos são oferecidos para depois falarmos da experiência. Também gostam de relatar o que é que foi giro para eles. Às tantas, eles crescem e acabam por encarar um bocadinho como o trabalho deles, dão a sua opinião, experimentam, mostram e encaram isso de um modo didático, divertido e gostam muito".

Os primeiros passos, as primeiras palavras, o dia em que aprendeu a comer sozinho, o primeiro dia de escola e por aí adiante. Se há umas décadas estes momentos eram guardados nos álbuns de fotos ou apenas em memórias, atualmente estão registados em fotos ou vídeos que são partilhados publicamente nas redes sociais pelos pais e não só.

Num estudo da "EU Kids Online Portugal" de 2018, divulgado a 23 de fevereiro, que incide sobre o uso da internet, as crianças e os jovens portugueses manifestam-se críticos sobre a partilha de conteúdos pessoais por parte dos pais, professores e amigos. Dos entrevistados, 28% referiram que os pais publicaram textos, vídeos ou imagens sobre eles sem lhes perguntarem se concordavam. Já 14% pediram aos pais para retirar esses conteúdos, avança a Lusa, que cita o documento.

Nestes casos estamos perante o sharenting, ou seja, o uso excessivo das redes sociais pelos pais para partilhar conteúdos relacionados com os filhos, sem o seu consentimento. O sharenting engloba dois termos: “share”, que significa partilha e “parenting”, que expressa parentalidade.

Para a psicóloga clínica infantojuvenil Inês Afonso Marques, há duas questões essenciais quando falamos das partilhas de fotos e vídeos feita pelos pais. Primeiro, coloca-se a questão de segurança. "Há uma pegada digital que depois de publicada não pode ser apagada. É fundamental o adulto ter consciência deste aspeto. Outro perigo real é a possível identificação de hábitos e rotinas das famílias, por exemplo, uma fotografia da criança com a farda escolar, que facilita a identificação da escola da criança, e que podem ser usadas de forma indevida", explica à MAGG.

Depois, há o direito à privacidade das crianças. "Quando não existe idade e maturidade para discernir sobre a exposição, cabe aos pais fazer essa reflexão, ponderando sobre os motivos por trás da partilha."

A imagem deles é exposta. A intimidade não. A intimidade deles é uma coisa que está entre nós, quem eles são, como eles são, como reagem, o seu feitio. Não exponho quais são os problemas deles, as suas ansiedades"

A especialista entende ainda que, por exemplo, uma criança em idade pré-escolar, já possui um sentido de individualização em relação aos outros e, como tal, sugere que se deverá ouvi-las antes da partilha do que quer que seja relacionado consigo. “Gostavas que partilhasse com todos os nossos amigos, familiares e conhecidos a tua audição de música ou o teu fato de Carnaval? No caso dos pais serem a favor da exposição, valeria a pena aferir a vontade da criança".

"A imagem deles é exposta. A intimidade não"

"Estou sensível e disponível para tudo o que os meus filhos me pedirem relacionado com a sua imagem porque a última palavra é deles. Em última instância é a imagem deles, não é a minha", diz a fotógrafa e blogger Catarina Macedo Ferreira. Apesar dos seus quatro filhos ainda serem pequenos, nunca lhe pediram para retirar algum conteúdo que tenha partilhado. No entanto, tem consciência que é algo que poderá acontecer no futuro e que vai respeitar a opinião dos filhos.

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Catarina Macedo Ferreira afirma que tem por hábito perguntar aos filhos mais crescidos, principalmente à filha de 9 anos, antes de publicar qualquer foto. Há uma espécie de "semiautorização". "Ela gosta de saber e de ver o que é que eu publico. Se ela concorda ou não tem normalmente mais a ver com a roupa que veste, se gosta ou não daquela roupa, se quer aparecer com aquela roupa ou não. Porque o facto de estar exposta, ela gosta e aceita." Admite, no entanto, que no seio familiar este não é um assunto que seja muito debatido e "explorado".

A fotógrafa natural de Lisboa não considera que a privacidade dos filhos esteja a ser exposta. "A imagem deles é exposta. A intimidade não. A intimidade deles é uma coisa que está entre nós, quem eles são, como eles são, como reagem, o seu feitio. Não exponho quais são os problemas deles, as suas ansiedades. Essa sim, seria a parte que mais me incomodaria na exposição em relação aos meus filhos. A sua vida privada não está exposta, o que está exposto é uma imagem, uma percentagem daquilo que eles parecem ser."

Do mesmo modo, também não sente que a segurança dos filhos seja colocada em causa com a partilha das fotos. Tem noção que há que ter em atenção certos aspetos, como por exemplo os locais onde as fotos são tiradas, como as escolas. Recorda até o dia em que a exposição que faz dos filhos acabou por lhe ser benéfica. "Já me aconteceu perder um filho na rua durante umas férias e 20 minutos depois ter uma seguidora do meu blogue que o encontrou e que veio ter comigo", relembra.

Para Catarina Macedo Ferreira,o perigo para as crianças — como os raptos — está, a maior parte das vezes, no âmbito familiar e nas pessoas próximas, e não tanto de desconhecidas.

"Pediu-me para apagar a publicação e acabei por fazê-lo"

"Há cerca de dois anos — a minha filha tinha 15 anos na altura — perdemos um gato que era o melhor amigo dela. Obviamente que ficámos muito tristes e eu também não consegui escrever nem publicar nada no Facebook. Mas um tempo depois quis falar pela primeira vez sobre o assunto e coloquei uma foto do gato e da minha filha", começa por contar Isabel Bordalo, 48 anos, natural de Sintra, à MAGG.

"Mas ela não queria que ninguém soubesse da perda do gato, porque era algo demasiado pessoal, porque era a vida privada dela e não queria que os meus amigos a comentassem. Pediu-me para apagar a publicação e acabei por fazê-lo."

Não só é uma exposição como também é uma invasão. Acho que essa exposição é perigosa, é invasiva e para mim é também uma forma de violência. Expor os filhos é uma forma de não respeitar o outro, mesmo que concordem"

Isabel Bordalo revela que nunca teve o hábito de publicar fotos da filha antes dos 14 anos. Acabou agora de completar os 18. Ainda assim, de vez em quando, como nos aniversários da filha, admite que gostava de colocar algo para marcar a data, mas sem sucesso. "A minha filha nunca permitiu, a não ser as que aparecia em família ou com amigos. Coloquei muito poucas coisas e era sempre ela que escolhia as fotos", recorda.

"Sempre que queria publicar alguma foto da minha filha, ela nunca gostava e dizia-me sempre 'não percebo por que é que os outros têm que me ver, eu sei que tens muito orgulho em mim'." A assistente social natural de Sintra garante que nunca publicou nada sem antes perguntar à filha se o podia fazer. "Hoje percebo que é um direito da minha filha não querer que eu publique fotos dela."

Isabel Bordalo não entende, no entanto, a exposição que atualmente é feita publicamente dos filhos pelos pais. "Não só é uma exposição como também é uma invasão. Acho que essa exposição é perigosa, é invasiva e para mim é também uma forma de violência. Expor os filhos é uma forma de não respeitar o outro, mesmo que concordem. E só porque é menor, não quer dizer que concorde com aquilo. Acho que é também uma falta de respeito dos pais pelos filhos."

A privacidade dos filhos é diminuída com a partilha das fotos

"Com o desenrolar das novas tecnologias e, principalmente, com o Instagram, foi mais normal e natural começar a publicar imagens dos meus filhos, mas sempre mediante a vontade deles. Por exemplo, o meu filho mais velho, de 16 anos, não gosta e não quer aparecer e não aparece. O Afonso, de 7 anos, também nem sempre quer. Portanto acho que é uma partilha natural, controlada e também de acordo com a disponibilidade e vontade dos meus filhos", conta Catarina Beato, de 40 anos, natural de Lisboa, à MAGG.

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Catarina Beato é a autora do blogue "Dias de Uma Princesa" — criado há 14 anos e que surgiu como um blogue de maternidade —, bem como da página de Facebook com o mesmo nome que já soma mais de 66 mil gostos. Na página de Instagram conta com mais de 52 mil seguidores. É também lá que partilha quase diariamente fotos dos filhos.

"Em termos de blogue e de Instagram, apesar de ser uma forma de mostrar a família, não sinto que seja muito expositivo, ou seja, não mostro a escola que os meus filhos frequentam, os lugares onde eles estão, não coloco situações ridículas que possam transparecer aquela sensação de vergonha alheia", afirma.

"A exposição deles é neutra, não são fotos deles a fazerem birras ou em situações de fragilidade. São fotos, muitas vezes, tiradas num contexto em que eles sabem que estão a ser fotografados e também não sinto que a partilha que faço os possa incomodar".

Ainda estamos para descobrir as consequências dos mom blogs

Com a evolução das redes sociais, tem-se assistido também a um aumento das "mommy bloggers". Segundo a psicóloga clínica infantojuvenil Inês Afonso Marques, por este ser um fenómeno recente é difícil avaliar os impactos para os filhos quando perceberem que têm a vida exposta desde muito cedo.

"Há o risco do impacto negativo dos mais novos, uma vez que a exposição abre portas à vulnerabilidade emocional. De forma que pode tendencialmente não ser controlada surge uma espécie de montra aberta para a vida da criança, acessível a um número por vezes inimaginável de pessoas. No entanto, não será igual em todas as crianças, porque os seus contextos serão diferentes, o estilo de partilha dos pais será diferente e as suas características de personalidade serão diferentes."

  • Ponderar qual a motivação que subjaz à escolha de publicar;
  • Refletir sobre os valores que defende na educação dos filhos e perceber se a partilha se enquadra nesses valores;
  • Decidindo partilhar/expor recordar a noção de pegada digital;
  • Imaginar trocar de lugar com o filho e pensar “se estivesse no lugar dele, como imagino que seria a minha reação, como me sentiria”? Se as noções de embaraço, vergonha, medo, zanga surgirem vale a pena voltar a ponderar sobre a pertinência do conceito de privacidade;
  • Quando há publicação, verificar definições de privacidade da rede social;
  • Nunca publicar imagens com elementos identificativos explícitos dos locais frequentados pela criança/família.

Neste âmbito, há ainda a questão de muitas destas crianças serem utilizadas como um veículo de publicidade. "O impacto que poderá ter na criança ou adolescente dependerá de vários fatores, nomeadamente das suas características pessoais, da sua história de vida, das relações que estabelecerá, assim como do tipo e estilo de publicações realizadas pelos adultos. À partida, crescendo numa família em que é natural a partilha de fotografias online, a criança poderá encarar mais tarde com naturalidade essa partilha e eventualmente optar por fazer o mesmo".

Catarina Beato encara esta partilha dos momentos com os filhos nas redes sociais como um "álbum de memórias", fazendo sempre com que seja o mais "agradável" possível para os filhos e que isso não lhes cause qualquer tipo de constrangimento.

"Muitas vezes as publicações são inofensivas para os pais, mas podem esconder um ativador de vergonha no filho. A intenção pode ser a melhor – por exemplo partilhar de um momento de sucesso, envolto em orgulho parental, mas as consequências imediatas ou posteriores podem acarretar embaraço para os mais novos", afirma a psicóloga clínica infantojuvenil Inês Afonso Marques. Questões como roupa suja, palavras mal ditas ou o cabelo despenteado ao acordar são as que crianças e jovens dizem causar mais desconforto e que podem ativar "instâncias de vergonha".

Segundo a especialista, o bullying e o cyberbullying existem – tanto em partilhas que são feitas pelos pais como pelos jovens –, mas a "pegada digital é uma porta aberta à vulnerabilidade e daí decorrem com alguma frequência situações dessas".

O meu blogue falava imenso do meu filho Gonçalo e perguntei-lhe, muitas vezes, se havia alguma coisa com o qual ele se sentia desconfortável, porque de alguma forma eu tinha invadido a privacidade dele quando ele era mais pequeno e contava alguns episódios"

De acordo com o estudo da "EU Kids Online Portugal", divulgado pela Lusa, que analisa os “usos, competências, riscos e mediações da Internet reportados por crianças e jovens” entre os 9 e os 17 anos, 6% registam ter recebido mensagens negativas ou ofensivas por causa de conteúdos sobre si publicados pelos pais, sendo que os rapazes reportam praticamente o dobro do que as raparigas.

"No meu ponto de vista, quando são pequenos acho que há uma partilha natural de fotos, mas a partir do momento em que eles conseguem verbalizar uma vontade sou totalmente a favor. Já aconteceu o Afonso, de 7 anos, ver uma foto que não gostava e pedir-me para tirar", recorda Catarina Beato.

Ainda assim, a blogger não tem dúvidas em afirmar que os filhos veem a sua privacidade diminuída com a publicação de fotos online e que esse é mesmo o lado menos "confortável" do seu trabalho. "Acho que existe uma invasão da privacidade deles, mas faço-o com a mesma naturalidade como quando andamos na rua ou no café. Tento fazer um equilíbrio. Por exemplo, o meu blogue falava imenso do meu filho Gonçalo e perguntei-lhe, muitas vezes, se havia alguma coisa com o qual ele se sentia desconfortável, porque de alguma forma eu tinha invadido a privacidade dele quando ele era mais pequeno e contava alguns episódios."

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Por outro lado, e apesar de ser da opinião de que a segurança dos filhos não é colocada em perigo, Catarina Beato reconhece que são necessários alguns cuidados, como por exemplo não partilhar qual é a escola dos filhos nem os percursos que fazem, não revelar quando estão de férias ou não dizer quando está sozinha em casa com eles. "Não escondo onde vivo, mas também não tenho de dar pormenores", refere.

Quer evitar que as memórias de infância da filha sejam esquecidas

"Somos uma família monoparental, existe uma relação extremamente forte entre nós e queria eternizar alguns momentos. Assim, quando a Matilde crescer, pode ver algumas coisas que viveu, locais que visitou, momentos engraçados e, desta forma, eternizá-los", revela Filipa Mioludo, de 30 anos. Quer evitar que algumas memórias de infância sejam esquecidas. "Hoje mesmo ela já faz isso, ou seja, regressa ao passado ao caminhar no nosso feed e relembra-se de situações e momentos engraçados".

A nossa privacidade mantém-se, tiramos muitas fotografias que nunca partilhamos, vivemos muitos momentos só nossos. Apenas partilhamos aquilo que queremos partilhar"

A administrativa de profissão tem uma filha de 7 anos. Com frequência, partilha fotos e vídeos da filha na sua página de Instagram, intitulada "Mãe da Miúda Mais Gira", bem como na página de Facebook com o mesmo nome. Nenhum conteúdo onde aparece a Matilde é publicado sem o seu consentimento. "Ao tirarmos as fotografias, ela própria aprova ou não aprova antes de eu as partilhar. Inclusive tira algumas já com o intuito de as partilhar, como é o caso da fotografia de corpo inteiro, onde mostra a roupa que veste no dia a dia."

Ainda assim, Filipa Mioludo garante que tem vários cuidados nas partilhas que faz, como não revelar o local onde residem ou a escola que Matilde frequenta. Apesar de colocar as localizações dos sítios onde as fotos foram tiradas, só as partilha dias depois de o sítio ter sido visitado. O mesmo acontece com as fotos, que vão para as redes sociais com dias de atraso. "A nossa privacidade mantém-se, tiramos muitas fotografias que nunca partilhamos, vivemos muitos momentos só nossos. Apenas partilhamos aquilo que queremos partilhar."

Filipa Mioludo não tem dúvidas de que, apesar de agora a Matilde gostar desta exposição, a opinião da filha irá ser sempre respeitada se isso mudar. "É a imagem deles e têm os seus direitos. Se a Matilde pedir para excluir alguma foto ou para não partilhar, eu respeitarei."

Inês Afonso Marques, psicóloga clínica, considera que, na sua opinião, o ideal é que os pais resguardem a intimidade dos filhos. "Os filhos pequenos não têm poder de decisão. Cabe aos pais agirem em consciência, de forma informada, conhecendo riscos inerentes, agindo de forma equilibrada e cuidada." As fronteiras entre o que é privado e íntimo são ténues. "Uma partilha de um momento de conquista, de uma novidade, como uma primeira ida à praia, o dia em que começou a andar, entram na esfera da intimidade? Definir estas fronteiras implica muito bom senso", concluiu.