José Correia Guedes conhece o mundo da aviação como ninguém. Formado na Flight Safety Academy de Vero Beach, na Flórida, EUA, trabalhou  na TAP durante 36 anos até terminar a carreira por limite de idade em 2006. Aos 72 anos, o portuense faz sucesso no Facebook com a página O Aviador, onde recorda através de textos e fotografias momentos da sua carreira — que deram origem mais tarde a um livro com o mesmo nome, publicado pela Leya no ano passado.

A turbulência não deita aviões ao chão, é possível fumar no cockpit se o comandante deixar, o piloto e o co-piloto nunca comem a mesma coisa e as máscaras de oxigénio só são úteis se houver uma falha no sistema de pressurização do avião — em caso de acidente não servem rigorosamente para nada. Os jornalistas da MAGG juntaram-se para encontrar as 20 perguntas que sempre nos atormentaram no que diz respeito à aviação, e José Correia Guedes respondeu a todas. Até mesmo se são frequentes as relações entre pilotos e assistentes de bordo.

É suposto aplaudirmos o piloto quando o avião aterra?
Não. Este hábito bem português terá começado pouco depois do acidente da TAP no Funchal em 1977 e tinha mais a ver com uma expressão de alívio do que qualquer outra coisa; depois generalizou-se. Não recomendo que se aplaudam os pilotos só porque fazem aquilo para que são pagos. Além do mais, com a porta do cockpit obrigatoriamente fechada eles não ouvem o aplauso e têm mais em que pensar naquele momento.

É verdade que o avião se pilota praticamente sozinho?
Não. Mesmo em modo de piloto automático são os pilotos que fornecem as informações aos vários computadores que asseguram a gestão do voo. Os automatismos funcionam e são recomendáveis mas o piloto tem sempre a última palavra.

Pode-se fumar no cockpit?
Sim, se o comandante assim o entender. Nos bons velhos tempos havia passageiros que só voavam com determinados comandantes para poderem beneficiar do privilégio. Foi assim que um colega e amigo meu ganhou um desenho da Paula Rego como agradecimento.

O que é que acontece se um piloto ficar doente durante um voo?
O outro piloto toma conta do avião e aterra logo que possível. É por essas e por outras que há obrigatoriamente dois pilotos no cockpit.

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Já adormeceu no cockpit?
Sim. Nos voos de longo curso é frequente os pilotos alternarem em pequenos períodos de descanso durante a noite; um toma conta da pilotagem do avião enquanto o outro “passa pelas brasas" durante dez ou 15 minutos. Faz toda a diferença e é importantíssimo para a segurança do voo.

Pode personalizar o cockpit? Por exemplo colocar objetos pessoais?
Não. Ninguém se lembraria de levar uma jarra com flores ou o seu próprio serviço de chá para o cockpit mas se o fizesse as coisas não iriam correr bem. No limite apenas algumas peças de vestuário (boné, luvas, casaco) de carácter pessoal são autorizadas.

Alguma vez teve de expulsar algum passageiro que estivesse a causar distúrbios?
Sim. Num voo entre Lisboa e São Paulo, 15 dias depois do 11 de setembro de 2001, tive de aterrar de emergência em Fortaleza para retirar do avião dois indivíduos que atacaram violentamente alguns passageiros. Estavam sob o síndrome de abstinência de drogas e como não podiam fumar, e álcool já tinha que chegasse, tornaram-se violentos com os passageiros. Com os acontecimentos de Nova Iorque ainda muito frescos a situação a bordo tornou-se muito preocupante e algumas pessoas tiveram ataques de pânico. Tudo acabou bem.

Onde é que os pilotos dormem em voos de longa duração?
Havendo três ou mais pilotos na tripulação um deles pode dormir tranquilamente num lugar adequado. Os Airbus 340 da TAP tinham junto ao cockpit um compartimento equipado com um beliche onde se dormia muito bem. Outros aviões têm acomodações para tripulantes noutras zonas, nomeadamente no porão.

Quanto ganha um piloto?
Pouco para a imensa responsabilidade que tem.

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Os pilotos estão sujeitos às mesma regras de segurança dos passageiros?
Em princípio sim, mas há exceções. Por exemplo, a seguir aos trágicos acontecimentos das Torres Gémeas de Nova Iorque, o Congresso dos Estados Unidos aprovou legislação que permitia aos pilotos americanos andarem armados quando em funções. Os pilotos europeus nem um corta unhas podiam levar para bordo durante esse período.

O que é que mudou na aviação desde que Andreas Lubitz colidiu de propósito com um avião?
Está confirmado que se tratou de um caso de suicídio, situação que é muito difícil de prever em termos clínicos ou psicológicos. Os pilotos fazem exames médicos todos os seis meses e acredito que haja agora mais preocupação com questões do foro psiquiátrico mas desconheço qualquer avanço significativo nesse domínio. Por definição, os pilotos são pessoas equilibradas e sensatas, não acredito que existam muitos Andreas Lubitz por aí.

Qual é a sensação de se sentir responsável por tantas vidas?
Num dos meus primeiros voos como comandante de Airbus A340 resolvi espreitar para a cabine de passageiros a meio da viagem. Quando vi 300 pessoas a olharem para mim senti um aperto no estômago e voltei a correr para o cockpit. Sim, é uma enorme responsabilidade, mas aprendemos a viver com ela.

A turbulência é mesmo perigosa?
Não. Só haverá riscos se os passageiros não respeitarem o sinal de apertar cintos e acabarem por ser projetados contra uma cadeira ou mesmo contra as bagageiras do avião. Do ponto de vista estrutural a turbulência não afeta a integridade da aeronave que está preparada para isso e muito mais. Nos últimos 30 ou 40 anos não tenho memória de qualquer acidente causado por esse fenómeno atmosférico que tantas preocupações injustificadas causa em tanta gente.

Qual a situação mais perigosa que pode levar um avião a despenhar-se?
Em 2017 não se registou um único acidente fatal no mundo da aviação comercial o que confirma o avião como o meio de transporte mais seguro alguma vez concebido. Os pilotos treinam frequentemente toda a espécie de emergências possíveis e imaginárias pelo que não há qualquer situação específica que seja mais preocupante que as demais. Não se preocupem; os aviões são hoje mais seguros que nunca.

Os pilotos comem o mesmo que os passageiros?
Não. As refeições dos pilotos são diferentes das dos passageiros e são diferentes entre si. Assim, se o comandante comer carne provavelmente o co-piloto come peixe e vice-versa. Por vezes tira-se à sorte quem come o quê. Mas há exceções. Certa vez fui à Austrália levar uma força militar que se destinava a Timor e a meio da viagem a pouco recomendável comida de bordo já tinha desaparecido. Foi então que os militares resolveram abrir os respetivos sacos e partilhar as saborosas iguarias com que as famílias os tinham presenteado. Aí comemos todos o mesmo e ninguém morreu.

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Os pilotos têm alguma regra ao nível da altura, peso, barba, piercings ou tatuagens, como por exemplo têm as assistentes de bordo?
Não. Em todos esses aspetos deve prevalecer o bom senso e a discrição tendo em conta que a imagem dos pilotos é muito importante para a tranquilidade dos passageiros.

Os aviões maiores são mais seguros que os pequenos?
Nem pensar. A tecnologia é a mesma e os princípios aerodinâmicos também. O tamanho só é importante para as conversas de café dos pilotos que adoram dizer “o meu avião é maior que o teu”. Mais nada.

Se um bebé nasce a bordo qual é a sua nacionalidade?
É pouco provável nos tempos que correm uma vez que é fortemente desaconselhado às senhoras viajarem com mais de seis meses de gravidez, mas se acontecer lá estará o comandante para resolver o assunto a partir dos poderes notariais que lhe são concedidos por estatuto para usar em situação de emergência. A legislação varia de país para país mas no caso português uma criança que nasça numa aeronave portuguesa fica obrigada a ser registada em Portugal.

Se um avião se despenhar, as máscaras de oxigénio servem de facto para alguma coisa?
As máscaras de oxigénio servem para os passageiros e tripulantes respirarem se houver uma falha no sistema de pressurização do avião. Em caso de acidente não servem rigorosamente para nada.

Quão frequente são as relações amorosas entre assistentes de bordo e pilotos?
Tal como em qualquer outro ramo de atividade a frequência dos contactos pode proporcionar amores, desamores e aventuras. Há muitos pilotos casados com assistentes de bordo e não consta que a taxa de divórcios seja superior à de qualquer outra classe  profissional. Agora também há pilotos casados com pilotos (homem e mulher). Não sei se já há algum casamento homossexual nesta profissão mas se não há vai haver. Os tempos mudaram.