Olá, leitora

A sua pergunta poderia resumir-se a um parágrafo ou dois, mas já sabe que eu gosto de fundamentar e mesmo de cutucar um pouquinho (estou aqui é para isso!), por isso, here we go.

Lá terei, pois, com muito gosto, de falar do meu ofício. Em quase 14 anos de profissão posso dizer que amei de algum modo cada pessoa que atendi e mesmo os que por algum motivo não ficaram tiveram a minha melhor consideração.

São as pessoas que me têm permitido continuar a fazer o trabalho sujo e bendito de lhes revelar o lado escuro e luminoso da (sua) vida. Afinal, dizemos muitas coisas que nem nós mesmos acreditamos. Além de que ter certezas demais é sinal de doença e não saúde.

Acredito profundamente na capacidade humana de superação e criação de conexões positivas, mas não fecho os olhos para o caruncho que todos nós carregamos na alma quando insistimos em amargar o sumo das nossas vidas.

Aprendi a acolher e a tratar das problemáticas daqueles que trazem questões sérias e nunca menosprezo uma lágrima sincera. Na verdade, acho um momento sublime e nada menos do que sagrado quando alguém se abre a mim de uma maneira visceral.

Há pequenas ações que fazem toda a diferença e costumamos ignorá-las. E enfim, teria uma infinidade de coisas para dizer, mas acho que este texto e, em especial, esta Rubrica (nomeadamente nestes artigos aqui e aqui já expõem muitas dessas ideias.

Mas bem, isto para lhe dizer o quê?

Cara leitora, que existe um território – absolutamente “sacrossanto” – que alicerça toda e qualquer intervenção psicológica – bem como a qualidade dos resultados que dela decorrem – chamado “relação terapêutica”.

Estou longe de ser uma profissional “pronta e acabada”, mas, ao longo dos anos, acho que tirei boas conclusões acerca deste nosso ofício peculiar de psicólogo. E uma delas é esta: a importância do estabelecimento e manutenção de uma boa aliança terapêutica (também chamada de "vínculo" e diz respeito a uma relação dual: entre paciente e psicólogo).

Este vínculo, entre outras coisas, funda-se num princípio de confiança e ele está apontado pela investigação como sendo um relevante sinalizador dos resultados desejados.

Isto é fruto de um trabalho a dois, que nasce de uma relação particular entre duas pessoas, e que inaugura um novo espaço e um novo tempo na vida de cada um, assim como um novo modo de “ser”, verdadeiro. É aí que qualquer que seja o seu anterior “estar” (pois existe uma diferença abismal entre “ser” e “estar”…) pode ser reformulado, transformado, reconstruido e potenciado numa psicoterapia, através do diálogo (esse mediador de ‘mundos’, interno e externo, e veículo de ligação entre o “eu” comigo mesmo e com o próprio mundo à minha volta) como elemento principal na resolução das questões cognitivas, emocionais e comportamentais que estiveram na base desse qualquer e anterior “problema”.

Não se trata apenas de ‘expertise’, de técnica ou de experiência do psicólogo. Não é só isso que conta, mas para predizer a eficácia de um acompanhamento, a questão que se coloca (e deve colocar!) para o paciente é esta: “sinto-me seguro ao ir ao encontro desta pessoa e abrir-me às minhas preocupações mais profundas, todas as semanas?”…

Pois é. É aqui que então podemos começar a falar melhor sobre se “sim ou sopas” relativamente à sua questão.

A Psicologia, assim como outras ciências, tem certos limites éticos. Não há nenhuma resolução do Código de Ética e Deontologia dos Psicólogos Portugueses que diga diretamente que o psicólogo não pode atender amigos de pacientes, entretanto, a Comissão de Ética da Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP) entendeu elaborar um parecer (documento integral recentemente publicado e disponível na internet) a propósito das intervenções que envolvam relações múltiplas.

Sem mais, passo a citar:

“Podem existir, fundamentalmente, dois tipos de relações múltiplas. (1) Construir uma relação de qualquer outro tipo (pessoal, comercial, social) com um cliente ou, pelo contrário, promover uma relação profissional com um amigo, cliente, fornecedor ou conhecido; ou então (2) iniciar uma relação profissional com uma pessoa proximamente relacionada com outro cliente, seja familiar, amigo ou colega de trabalho. O problema em ambas é a existência de múltiplas fontes de informação. Quando estabelece uma relação múltipla, seja de que tipo for, o Psicólogo está a multiplicar as fontes de informação. Vai obter informação a partir de outros contextos ou de outras pessoas relacionadas com o cliente. Isso pode diminuir a liberdade do cliente em contar o que quiser ou aquilo que estiver preparado para contar ao Psicólogo. Paralelamente, poderão surgir questões de privacidade. Se um cliente passa informações sobre outro, em contexto de intervenção psicológica, o Psicólogo não poderá nunca utilizar essa informação nem se deixar influenciar por ela.”

A partir daqui, diga-me a leitora: acha que faz muito sentido a sua psicóloga (vamos supor que a leitora se chama Maria) – que aos olhos da sua amiga (chamemos-lhe Caxuxa) começa por ser “a psicóloga da Maria” – ser “a psicóloga da Maria que-agora-também-é-da-Caxuxa?”. Diria que não… que a sua amiga merece (tal como todas as pessoas merecem, no exercício da sua liberdade e individualidade, direitos estes consagrados, inclusive, no Código de Ética dos Psicólogos como na própria Constituição da República!) ser vista como uma verdadeira "página em branco" e não aparecer diante dos olhos da “sua” psicóloga já (inevitavelmente) pintalgada?!

Percebe assim que a confiança entre o psicólogo e o seu paciente é uma base essencial para o exercício da prática da psicologia e é dever daquele (do psicólogo) proteger a sua relação com o seu paciente?

Percebe também que a confiança é condicionada pelo impacto de relações ou circunstâncias que proporcionam informação sobre o paciente, externa à que resulta da relação profissional estabelecida entre o psicólogo e o seu paciente?

Explicitarei a resposta à sua questão com mais linhas do documento que lhe citei (Pareceres da Comissão de Ética da OPP):

“ (…) O desenvolvimento por parte do Psicólogo de relações profissionais que envolvem separadamente clientes com relações afetivas entre si, terá, necessariamente, influência na relação de confiança, podendo constituir um conflito de interesses;

- O Psicólogo deve reger a sua prática de modo a evitar relações múltiplas, evitando manter uma relação profissional com clientes cuja proximidade relacional possa interferir ou prejudicar a isenção com que exerce a profissão;

- O Psicólogo deve reger-se de acordo com os princípios de objetividade e isenção, tendo consciência da importância das suas características pessoais e do impacto na relação do desenvolvimento de intervenções com as quais não se sente confortável (…).”

Existem dois princípios essenciais que regem esta questão, e são eles nomeadamente, os princípios da responsabilidade e da integridade. Um psicólogo deve estar consciente do impacto que a sua atuação poderá ter junto do paciente, procurando promover o seu bem-estar e nunca prejudicando-o de uma forma consciente ou negligente.

Ao promover e proteger a privacidade da relação que o psicólogo tem com o seu paciente ele está a ter em vista a manutenção da confiança deste na relação estabelecida.

Portanto, se me pergunta: “Há problema em sugerir a minha psicóloga a uma amiga?”, a resposta é ora essa! É claro que, da sua parte, pode sempre sugerir! Agora, caberá à sua psicóloga decidir se a construção de relações profissionais com pacientes com relações afetivas entre si ou de outras relações (para além da profissional com o seu paciente) não coloca em causa a privacidade de cada um dos pacientes, e salvaguardar a confiança destes na relação profissional.

Deixe-me dar-lhe um exemplo para tornar isto mais claro. Em terapia, é frequente os pacientes projetarem-se no psicólogo e essa projeção é muito importante para o trabalho terapêutico. Em psicologia, a projeção é um mecanismo de defesa no qual os atributos pessoais de determinado indivíduo, sejam pensamentos inaceitáveis ou indesejados, sejam emoções de qualquer espécie, são atribuídos a outra pessoa. Quando já temos um contacto ou informações prévias relativas a uma pessoa, o processo de transferência ocorre, mas não é tão significativo quanto o que se fosse atender quem não conhecemos de todo. E porquê? Porque os psicólogos são técnicos, é certo, mas também são pessoas! E isso também envolve o sentimento do psicólogo (que chamamos de contra-transferência) para o paciente. Logo, quando há um contacto fora do ‘setting terapêutico’ ou outras fontes de informação “extra-consultório” perde-se (e contamina-se) a qualidade da visão do psicólogo.

Quem chega a alguém com ideias e diagnósticos pré-concebidos fica cego para o novo, e, ao invés de  entender a realidade, passa o seu tempo a classificar segundo conceitos enviesados, fixos ou pouco flexíveis.

Sim, acredito mesmo que as pessoas não se definem pelo problema pelo qual estão a passar (até porque, num dado momento, podem “ter” o problema, mas não significa necessariamente que elas “são” o problema”, tal como qualquer pessoa, por exemplo, que pode “estar” com uma constipação, mas não equivale dizer que ela “é” a constipação, verdade?). Assim, eu encaro os diagnósticos sempre como pontos de partida e nunca como pontos de chegada. Eles servem, sim, e muito, para nos orientar, para nos dar informações, pistas, caminhos, mas para quê, no fim de tudo? Para mudar, para sabermos como ajudar a transformar uma determinada situação. Então, considero que é crucial para um psicólogo não definir (sobretudo “a priori”) um ser humano com quem trabalha através de um código de classificação de doenças. Isso desumaniza a pessoa atendida, classifica-a num conjunto de sintomas previstos e afeta significativamente a possibilidade dos vínculos necessários para uma boa atividade profissional. Em resumo, e como costumo dizer, os “rótulos” são para as garrafas e não para as pessoas (fiz até um vídeo sobre isso, dê uma espreitada aqui):

Como decerto compreendeu, a natureza da relação terapêutica (que mesmo tratando-se de uma relação profissional, não deixa de ser uma relação... humana!) é particular, e, porventura, delicada, sendo que obedece a regras e a preceitos próprios.

Para além disso, "ver" é muito diferente de "olhar"... Tal como "escutar" não é simplesmente "ouvir". Um psicólogo, desde logo, na faculdade aprende a “escutar”. É uma escuta completamente diferente dessa que você tem com os seus amigos, por exemplo.

A escuta ativa (tecnicamente chama-se assim) que o psicólogo faz em relação àquilo que lhe diz, permite a interpretação e conceptualização do seu conteúdo (dentro das dimensões não apenas do que é “dito”, mas também ao nível do “não-dito”, ou seja, o discurso implícito para além do que podemos dizer explicitamente) e – resumindo, abreviando e descomplicando parte deste processo – isso tudo no fim de contas fará com que uma pessoa possa começar a ver coisas que não via antes, a entender outras tantas coisas que provavelmente a leitora não entenderia antes, para a partir disso, natural e consequentemente começar a fazer coisas que não fazia antes e a ter resultados que também não tinha antes.

Você já passou por um problema no qual não conseguia pensar positivamente sobre as possíveis soluções? Na realidade, a hipótese de existir uma solução para aquele problema era remota?

No meu trabalho clínico, escuto sempre com atenção a descrição dos problemas para tentar perceber até que ponto aquele problema é efetivamente um impasse real ou uma “cortina de fumo” para uma questão mais séria e profunda.

Em muitos casos, podemos reconhecer quando um problema não é "o" problema, ou seja, aquilo que percebemos como "o" problema pode ser a ponta do icebergue, pois quando reduzimos as variáveis a pequenas características que se repetem em áreas diferentes da vida chegamos a uma visão mais global e profunda.

Neste vídeo, disponível aqui em baixo, dou-lhe alguns exemplos reais de situações em que aquilo que era considerado um problema nem sempre é “o” problema, mas apenas a manifestação sintomática de algo maior e mais complexo que está na base dessa manifestação/sintoma.

É importante que mais e mais pessoas saibam da seriedade e importância da Psicologia, e o quanto é necessário buscar essa ajuda junto dos profissionais aptos para isso. Algumas pessoas têm uma visão truncada em relação a fazer terapia, inclusive confessam-se receosas, dizendo que “jamais” irão precisar, pois consideram-se os seus “próprios terapeutas”. Acho engraçado essa frase porque ela contém uma profunda verdade, mas nem todos estão de ouvidos abertos para esse “terapeuta” interior. Obrigada, pois inspiraram-me a fazer este vídeo (a seguir)!

Portanto, é claro que o psicólogo, assim como todos os profissionais, deve observar as condutas éticas no exercício das suas actividades e – mais do que seguir as normas estabelecidas pelos códigos de conduta da sua profissão – deve deter um olhar atento e cuidadoso relativamente ao bem-estar e às necessidades do paciente. Estas devem vir em primeiro lugar, sempre prezando pela sua segurança, pelo sigilo profissional e pela qualidade do seu serviço.

Quanto mais neutro, melhor o trabalho do psicólogo. Quando há outros tipos de vínculos ou de relações múltiplas isso põe em risco a confiabilidade do processo, uma vez que, mesmo embasado por técnicas científicas, o psicólogo é um ser humano, dotado de sentimentos, vontades e desejos. Desta forma, atender alguém com vínculos de proximidade ou afetivos com o seu paciente pode afetar a sua avaliação, desvirtuando assim o sentido da própria intervenção. Espero ter sido clara.

Até para a semana.

As coisas MAGGníficas da vida!

Siga a MAGG nas redes sociais.

Não é o MAGG, é a MAGG.

Siga a MAGG nas redes sociais.