A Princesa Diana não quebrou apenas as barreiras do protocolo real. Numa altura em que as doenças mentais eram problemas que não deviam sair do espaço circunscrito a uma casa (ou ao próprio pensamento), a mulher do Príncipe Carlos, membro da conservadora realeza inglesa, falou abertamente sobre aquilo por que já tinha passado: depressão associada a um casamento infeliz, depressão pós-parto, bulimia.

“Acordava de manhã sem querer sair da cama, sentia-me incompreendida e muito em baixo”, disse, na entrevista dada a Martin Bashir, do programa “Panorama”, realizada às escondidas do Palácio de Buckingham. “Deu a toda a gente um maravilhoso novo rótulo: Diana, a instável, ou Diana mentalmente desequilibrada.”

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Apesar de as doenças mentais ainda estarem sujeitas a este tabu, não se pode negar que o olhar sobre elas mudou. Hoje, estamos mais conscientes de que elas existem, da sua abrangência, da sua força e da sua transversalidade.

“O ponto mais central que possa ter evoluído é a forma como olhamos para a saúde mental. A sociedade, que sempre teve um estigma sobre esta temática, está cada vez mais disponível para a abordar”, diz à MAGG a psicóloga Dina Guerreiro. “A grande evolução foi na consciência, disponibilidade e sensibilidade que ganhámos para abordar a questão da saúde mental.”

Hoje, sabemos melhor (talvez ainda não o suficiente) que a ansiedade, a depressão ou transtorno obsessivo-compulsivo não dependem de classe social ou de herança genética. Sabemos que não são coisa de gente maluca e desequilibrada. E, muito importante, sabemos que não acontece só aos outros — também nós estamos sujeitos.

A mente é volátil e a fragilidade faz parte da condição humana. Existir não é fácil. Por isso, se andamos cá todos, “somos todos suscetíveis.”

De acordo com o relatório de Health at a Glance, divulgado em 2018 pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), 18,4% da população portuguesa sofre de uma doença mental, o que coloca Portugal em quinto lugar deste ranking. A depressão e a ansiedade são as duas doenças com maior prevalência.

As celebridades começam a falar sem vergonha

Pela altura em que a Princesa Diana admitiu publicamente que sofria de bulimia (a primeira vez que o refere é no livro de 1992 de Andrew Morton), muitas pessoas do Reino Unido e um pouco por todo o mundo ganharam coragem e admitiram que sofriam do mesmo problema, como é referido num estudo de 2005.

É este um dos poderes das figuras públicas: ao contarem a sua história, geram um sentimento de identificação. Ao exporem as suas vulnerabilidades, mostram que a fragilidade é inerente à condição humana. E, assim, dão coragem a quem sempre se escondeu — e mudam a visão de quem nunca compreendeu.

O filho de Diana, o príncipe Harry, seguiu o mesmo exemplo. Admitiu publicamente que, desde a morte da mãe, sofria com ataques de pânico. “No meu caso, sempre que estava em qualquer sala com um monte de gente, o que é bastante frequente, começava a suar, o meu coração a bater — boom, boom, boom, boom — literalmente, como uma máquina de lavar”, disse, citado pelo “Daily Beast”.

Com a morte da princesa, a coroa britânica (em especial, Harry) tem-se esforçado para lutar contra o estigma inerente às doenças mentais — tanto que o marido de Meghan Markle uniu forças com a apresentadora Oprah Winfrey para, já em 2020, lançarem um documentário relacionado com este tema na Apple TV.

A doença mental de figuras públicas tem contribuído para uma desmistificação massiva de várias temáticas inerentes à saúde psicológica e para uma maior literacia para a saúde"

Mas estas são apenas duas figuras do universo mediático a abordarem, sem balizas, a questão. Uma pesquisa pelo Google leva-nos a dezenas de exemplos de figuras públicas que sofrem ou sofreram de problemas relacionados com saúde mental. Vejamos: Emma Stone sofre de ansiedade desde os 7 anos, Missy Elliot teve um ataque de pânico antes de subir ao palco do Superbowl, Amanda Seyfried sofre de transtorno obsessivo compulsivo. Podemos continuar a dar nomes: o ator Chris Evans, Jennifer Lopez, Adele, Kendall Jenner, Lady Gaga. Enfim, a lista é grande — e todos eles têm os seus problemas.

Também no cenário português temos exemplos. O caso mais recente é referente a Cláudio Ramos: o apresentador teve de abandonar o programa “Passadeira Vermelha” por estar com muitas dores de cabeça. Na sequência do acontecimento, explicou aquilo por que andava a passar.

Novamente, ataques de pânico. ”Tive uma semana complicada, porque tive um ataque de pânico, que me levou a não fazer o 'Passadeira' de segunda-feira. O diagnóstico foi de ansiedade extrema. Acontece com frequência o estado de ansiedade extrema, não há nenhuma razão aparente para que aconteça, segundo o doutor”, contou no “Programa da Cristina”.

Segundo a psicólogo clínica Filipa Jardim Silva, esta onda de desabafo público tem levado à tal mudança de paradigma. “A doença mental de figuras públicas tem contribuído para uma desmistificação massiva de várias temáticas inerentes à saúde psicológica e para uma maior literacia para a saúde."

Mas onde é que isto começa, concretamente? Fazendo uma retrospetiva rápida pela década, podemos afirmar que a morte de duas importantes figuras do mundo do cinema e da gastronomia, foram determinantes que o assunto fosse, finalmente, debatido sem estigma: “Eventos como o suicídio do Robin Williams, em 2014, ou de Anthony Bourdain, em 2018, contribuíram para que as fronteiras entre saúde e doença mental fossem discutidas e informação útil fosse divulgada."

Com isto, começa finalmente a surgir uma corrente sem vergonha, que se reflete em figuras públicas a falarem abertamente sobre os seus próprios problemas e transtornos, sejam do pânico, ansiosos, obsessivo compulsivos. Como resultado, a doença deste foro vai deixando de ser sinónimo de loucura ou de fraqueza e, finalmente, entende-se: "É sinal de humanidade."

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E uma coisa puxa a outra. Quanto mais se discute um tema, mais relevante ele se torna. E quanto mais interesse ele gerar, maior será a sua presença nos diferentes meios. Assim, as doenças mentais chegam aos filmes, séries ou telenovelas, com uma abordagem próxima daquela que é sentida na vida das pessoas — com a tal ideia de que todos estamos suscetíveis e de que estas doenças não são coisa de gente maluquinha.

Um par de exemplos recentes: a polémica série da Netflix “Por 13 Razões”, em que a personagem principal comete suicídio, fruto do bullying dos colegas, que a leva a um estado depressivo; a série “This is Us”, onde um dos personagens sofre de ansiedade e outro de depressão (ambas figuras masculinas, o que é pouco comum, quebrando-se outro estereótipo) ou ainda a série-documental “The Mind, Explained”, que, num dos episódios, explica o modus operandi da ansiedade.

Para Filipa Jardim Silva, a inclusão da temática nas narrativas televisivas “contribui para pôr as pessoas a falar sobre isso no seu dia a dia.” E isto é independente do gosto: “Gostem ou não, seja mais ou menos claro, cativa-se atenção que gera busca de informação e reflexão muitas vezes.”

É bom e é mau. O duplo papel das redes sociais

As redes sociais são uma pescadinha de rabo na boca. É que, se por um lado, são um excelente meio para comunicar para um público amplo sobre problemas de saúde mental — é uma das plataformas que várias celebridades usam, incluindo, por exemplo, a modelo Cara Delavigne —, é também um meio potencialmente gerador da ansiedade. É que é pelo Instagram ou Facebook, por exemplo, que damos conta da suposta vida perfeita dos outros, tão diferente da nossa.

Enquanto seres sociais que somos nada poderá substituir um contacto ao vivo e a cores e uma partilha de qualidade com alguém de quem gostamos”

“As redes sociais têm dois papéis preponderantes”, diz Dina Guerreiro. “São altamente perigosas porque são seguidas como um modelo: as pessoas querem seguir aquela imagem, aquele corpo, aquele estilo de vida, que muitas vezes sabemos que é só da personagem e que não é da pessoa que a interpreta. Por outro lado, são um ótimo aliado — tal como a televisão, são um meio para desmistificar. Da mesma forma que causam pressão, há cada vez mais pessoas do meio mediático a exporem-se e a contarem que nalgum momento passaram por uma doença mental.

Filipa Jardim Silva também consegue ver o lado bom e mau das plataformas. É que se, por um lado, elas têm diminuído as fronteiras entre as pessoas (o que é também “um fator de proteção), facilitando o acesso a informação e a testemunhos de diversas temáticas, por outro podem ter o mesmo efeito maligno referido por Dina Guerreiro.

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Neste lado menos bom, assumem-se mesmo como um fator de risco, sobretudo se considerarmos o tempo que dispensamos a olhar para os ecrãs, muitas vezes “num exercício de voyeurismo e comparação com o melhor dos outros, que só tende a contribuir para maiores níveis de insegurança e depressividade.”

A utilização das redes sociais tem de ter uma medida. É que, como em qualquer dependência, há consequências adversas. A mente é neste caso a maior prejudicada: Filipa Jardim Silva aponta maiores níveis de desatenção, alienação, isolamento social, diminuição de competências sociais e potencial aumento de transtornos depressivos.

“Enquanto seres sociais que somos, nada poderá substituir um contacto ao vivo e a cores e uma partilha de qualidade com alguém de quem gostamos”, destaca.

Conscientes dos potenciais perigos, o truque passa por saber tirar partido dos benefícios que estas plataformas nos podem dar. “Mais e mais profissionais de saúde e de desenvolvimento pessoal usam as redes sociais para disseminar informação de qualidade e recursos úteis para uma melhor regulação emocional. O contactar com outras pessoas com problemáticas semelhantes também pode constituir um suporte.”

“As políticas não são de todo suficientes para acompanhar as necessidades”

As figuras públicas falam, os testemunhos proliferam, as séries e os filmes incluem a temática nas narrativas. Mas através do número de camas de hospital ou no acesso aos gabinetes de psicologia nos centros de saúde, é evidente que em Portugal ainda há um longo caminho a percorrer de modo a dar resposta às necessidades de tratamento de problemas de saúde mental da população.

Nesta década, segundo Filipa Jardim Silva, "tivemos melhorias na intervenção relativa à doença mental severa ou nas taxas de suicídio. Houve ainda uma melhoria na adequação de diagnósticos, uma melhoria na formação de mais psicólogos clínicos e na formação de profissionais de saúde para as problemáticas ligadas à saúde mental."

Mas ficam a faltar aspetos fundamentais, ligados aos padrões da atualidade. Os casos de depressão, ansiedade e burnout em camadas mais jovens aumentaram, mas ainda não houve uma adequação a esta realidade. “Não se registou o investimento orçamental devido por parte de todos os governos, nem se implementaram as políticas necessárias para democratizar verdadeiramente o acesso a um serviço de saúde mental de qualidade.”

É, o mundo mudou. "Vivemos numa sociedade muito competitiva. A nível laboral, as pessoas antes tinham um emprego e mantinham-se nele, bem ou mal. Não era uma fonte stressora, como é hoje, em que há uma instabilidade muito superior", explica Dina Guerreiro.

Aquilo que aconteceu em Portugal aquando da passagem da troika mostra como as más condições de vida andam de mãos dadas com uma mente menos saudável. “Nos tempos da troika, as consultas por depressão nos centros de saúde aumentaram e, depois de a economia dar sinais de recuperação, diminuíram”, disse o jornal “Público”, em novembro, referindo-se a dados do Instituto Nacional Ricardo Jorge, que permitem correlacionar “os novos casos de depressão e a taxa de desemprego.”

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“Em todas as legislaturas define-se um plano nacional para o doente mental e continuamos, transversalmente, a viver uma realidade em que as respostas não acompanham as necessidades”, considera Dina Guerreiro.

Para as doenças mentais mais primárias — ansiedade, depressão — as políticas que existem parecem ser insuficientes.

“Uma pessoa precisa de recorrer a um psicólogo e nos centros de saúde não existem profissionais suficientes para dar resposta. Numa tentativa de suicídio, por exemplo, uma pessoa recorre aos hospitais públicos e muitas vezes não há camas suficientes na zona reservada às doenças psicológicas para dar resposta. E, quando há, o doente acaba por ser inserido num ambiente muito pouco propicio à sua reabilitação.”

Com a falta de acompanhamento, os estados agravam-se e aos tratamentos só restam os fármacos. “Se houvesse maior acompanhamento psicológico logo à priori, havia menos necessidade de recorrer a psicofármacos, financiados pelo SNS [Sistema Nacional de Saúde]. Recorrem-se aos fármacos e mais nada porque terapia não é acessível a toda a gente”, diz Dina Guerreiro. Filipa Jardim Silva chama a atenção para o mesmo: “A primeira resposta para problemáticas da doença mental não deve passar por fármacos mas sim por psicoterapia.”

Esta última especialista aponta mais fatores, que são sintomáticos da falta de seriedade com que, institucionalmente, ainda se encara a saúde mental.

“Se fossem [encarados com seriedade], todos os jardins de infância, escolas e faculdades teriam psicólogos integrados nos seus quadros, em número suficiente, para fazerem um trabalho de qualidade com toda a comunidade educativa.”

Continua: ”Se fossem, os acompanhamentos psicológicos no SNS seriam compostos por consultas de 50 ou 60 minutos, com uma regularidade semanal ou quinzenal, asseguradas por profissionais devidamente qualificados, com atualização permanente de saberes e cujo desenvolvimento pessoal também está garantido”, continua.

As listas de espera para consultas de psicologia seria diminuta e quando uma pessoa integrasse um qualquer serviço de saúde, seria encarado de forma integrada e perguntas acerca de parâmetros importantes para a saúde mental seriam sempre feitas.”

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Por último, ainda chama a atenção para a descriminação em contexto laboral: “[Com a devida importância] uma baixa por questões de saúde mental seria aceite com tanta naturalidade e respeito como uma baixa por questões de saúde física. Mais, existiria o incentivo ao auto-cuidado e a um dia a dia humanizado, pelo que não se pediria a ninguém que trabalhasse 10 a 12 horas por dia e que prejudicasse o seu descanso em prol do trabalho.”