Dalila Carmo não constrói muros nas suas relações e assume-se como uma pessoa aberta, empática e fácil de se gostar. Talvez por isso, e embora nunca a tenhamos conhecido, a conversa antes da entrevista tenha durado mais de 30 minutos onde nem houve espaço para quebrar o gelo. É que com Dalila não há gelo para quebrar, não há elefantes na sala nem assuntos desconfortáveis. E nem mesmo o cansaço decorrente do ritmo frenético das gravações de "Na Corda Bamba", a nova novela da TVI, lhe retiraram a energia característica.

Na nova aposta do canal, a atriz de 45 anos dá vida a Lúcia, a antagonista da história que rouba bebés a prostitutas. O objetivo? Dar àquelas crianças uma melhor qualidade de vida.

As características complexas da sua personagem, como o facto de estar no limiar da psicopatia (na medida em que não sente remorsos daquilo que faz), serviram de mote para falar da violência e da glorificação do mal na ficção — que a atriz diz está a ser explorado "de forma desonesta".

"A arte não deve ser branqueada, mas não gosto daquele populismo que diz para esfregarmos uma realidade na cara das pessoas para ver se elas percebem. Acredito muito mais no poder da sugestão do que no poder da mensagem imediata e escarrapachada", revela. É nessa linha que crítica a violência dos filmes de Quentin Tarantino, em parte porque tem apenas um objetivo estético e visual. "É uma coreografia onde não há redenção", diz, acrescentando que isso a irrita.

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Pelo meio, houve tempo para falar da realidade da televisão e da superioridade moral que parece conferir a alguém que diz não estar atento ao meio. "Isso faz-me chorar. Todos os meses há alguém que me pergunta o que é que eu faço. E fico triste, não por uma questão de ego. Só penso: 'Porra, estou aqui há 30 anos e nunca passaste por alguma coisa que eu tenha feito?'", lamenta.

E porque com Dalila não há temas desconfortáveis, comentou ainda o facto de "Na Corda Bamba" estar sucessivamente a perder para "Nazaré", da SIC: "O nosso projeto não pode ser o bode expiatório de nada. Não ouvi a TVI a pôr as culpas em nós e, se isso acontecesse, teríamos um problema", garante.

Isto de ser jornalista é ser um bocadinho batoteiro porque nos dá oportunidade de conhecer pessoas que estamos habituados a ver na televisão ou no cinema. No caso dos atores, a batotice está em ter uma vida múltipla em cena?
Curiosamente, e embora talvez muita gente não partilhe da minha opinião, onde não se pode mesmo fazer batota é a representar. Podes fazer batota noutras coisas: podes inventar uma persona que não existe. Com as redes sociais é muito fácil e há pessoas com várias identidades possíveis. Mas a representar não é possível e passei toda a minha adolescência a tentar perceber quais eram os atores que faziam batota. No processo de aprendizagem e de formação como atriz, procurei as pessoas que sempre me ajudaram a encontrar a verdade.

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A regra de ouro da Marcia Haufrecht, a professora com quem trabalhei mais tempo, era: “Don’t act”, não representes. Daí que a minha prioridade tenha sido, desde o início, encontrar todas as pessoas possíveis dentro de mim, apropriando-me delas ao ponto de não fazer delas, mas sê-las. Há uma interiorização e apropriação de uma nova identidade mas em vez de fazê-la de fora para dentro e de a julgar e racionalizar, ser um processo mais interior. Mais sensorial.

E para isso não pode haver batota?
Nunca, porque este é um processo muito diferente e eu consigo facilmente perceber quando é que um ator me está a tentar enganar. E por isso nunca quererei fazer aquilo que não gosto que os outros façam. Porque se sentir que menti numa determinada cena, não vou dormir bem essa noite. Mesmo.

E quais são as características que denunciam um ator que lhe está a mentir?
Noto tanto, é horrível [risos]. Porque depois não consigo entrar nas cenas quando sinto que me estão a mentir. Mas é muito fácil detetar.

Mais como atriz do que como espectadora?
É igual. Tanto posso estar sentada a ver um produto e aperceber-me das manhas do ator, como posso estar a contracenar e sentir que ele não está lá, que não me está a ouvir e que não há comunicação.

Mas quais são essas trapaças que um ator faz e que o denunciam?
Estamos a falar de uma coisa que entra no reino da subjetividade. Existem vários caminhos legítimos para um resultado válido e cada ator tem o seu processo ou, pelo contrário, a ausência de processo — que pode gerar a batota. Quem não estudou, procurou e não se interessou por um caminho, dificilmente vai ter um bom desempenho e isso nota-se de imediato.

Há pessoas que são mais técnicas, que têm uma preocupação maior com o texto e com as intenções. Há outras que trabalham em frente a um espelho, e noto logo quando é que esse ator pôs um espelho à frente para se ver representado e… [pausa longa].

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Tocam-lhe campainhas na cabeça?
É imediato. E são mais as vezes em que elas tocam do que aquelas em que não tocam. Como espectadora, é muito difícil estar totalmente entregue a uma história a menos que estejam todos em sintonia.

Ainda a propósito de uma vida múltipla em cena, há incómodos dessa multiplicidade como absorver traços de uma personagem mais intensa, mais dura ou sofrida?
Há. Mas da mesma forma que aprendemos a entrar, aprendemos a sair.

Mas seguindo a sua linha de raciocínio, esses traços não pertencem também a um lado seu?
Há coisas que trabalho e outras que encontro em mim porque existem várias ferramentas possíveis. A Marcia [Haufrecht] dizia-me: “Tu tens todas as mulheres dentro de ti”. Claro que há pessoas mais coloridas do que outras e, se calhar, ela referia-se ao facto de notar aqui uma personalidade um bocadinho mais paradoxal que acho que tenho. Nesses antagonismos, ela encontrava possibilidades de eu descobrir mulheres diferentes de mim.

Sobre a construção do processo, o primeiro passo é encontrar, através de uma auto-análise, esses traços que estão mais apagados ou perdidos dentro de mim. Mas às vezes é mesmo necessário inventá-los e a observação é fundamental, porque nos permite, enquanto atores, apropriar de forma orgânica um traço que acaba por se tornar nosso. Nem que seja temporariamente.

Mas também é preciso imaginação.
Se não tivermos anos de vida suficientes para chegar a uma determinada construção, temos sempre de recorrer à imaginação. Mas é essencial que haja liberdade e faço por não me cingir à didascália do texto — acreditando que os meus instintos também podem estar corretos e não ter medo de exagerar e de experimentar. Principalmente em novela, o processo de construção é totalmente diferente de outros formatos como o cinema e o teatro.

Como não é estanque e está em constante movimento, só ao fim de um ou dois meses é que acho que a personagem já tem alguma identidade e um corpo definido. Não podemos ficar reféns da memorização das palavras porque se for só isso, dificilmente lhe vamos dar vida para além daquela que o texto já tem. Por isso é que tem de haver um desmame do texto ao final de cada dia de trabalho.

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E tem-lhe sido fácil, dada a intensidade da personagem?
As minhas insónias vêm do facto de esta Lúcia [a personagem que interpreta na novela “Na Corda Bamba”] ser um carro de Fórmula 1 que chega a atingir determinadas velocidades que eu não consigo travar. Aqui o dilema tem sido não tanto o ficar com traços de personalidade dela, mas o não conseguir calibrar e entrar em modo de voo. A alienação é fundamental para um ator respirar.

Temos de aprender a entrar e a sair com o corpo todo. Quanto menos racional for o processo, melhor. A cabeça é o último lugar por onde a personagem tem de entrar.

É-lhe mais fácil trabalhar com a alegria ou com o lado mais negro da vida?
Adoro as duas e uma equilibra a outra. Se tive um dia em que trabalhei mais a minha zona de sombra, alivia-me imenso acabar a cena aos saltos na cama. Mas é difícil. As pessoas não têm muito bem noção disto, mas nós andamos permanentemente com os ponteiros do nosso estado emocional para cima e para baixo e isso gera um desequilíbrio absurdo. Somos um bocadinho mais bipolares e o exercício está em tentar neutralizar isso.

Quanto mais arco-íris, e mais arco, mais realizada me sinto. Gosto, essencialmente, de não saber para onde é que a cena vai. Defino o ponto de partida mas tento não conduzir a cena e deixar que seja ela a conduzir-me e, por isso, dificilmente sei de que forma vai acabar.

Que impacto é que essa bipolaridade tem nas relações que estabelece com os outros fora da representação?
É muito complicado mas, também por isso, cada pessoa que existe na minha vida é escolhida a dedo. Embora conheça muita gente, tenho uma estrutura afetiva, composta por pessoas que me são próximas, relativamente reduzida.

Sou muito espontânea e tenho alguma facilidade em me dar às pessoas e por vezes arrependo-me. Ainda no outro dia uma pessoa de quem eu gosto me disse para relaxar com aquele tom de condescendência e eu só pensava: “Porra, se me conhecesses a sério, o que é que dirias?”. Serei sempre uma pessoa existencialista e o hedonismo faz-me uma certa confusão e, realmente, demora até construirmos relações de afeto com pessoas ao ponto de não ser preciso estarmos constantemente a justificar-nos.

'Não somos o bode expiatório e esta crise da TVI é anterior à “Na Corda Bamba”. Para recuperar, vamos precisar de uma estratégia. Qual? Não sei, não me compete. Sou atriz'

Não constrói muros nas relações que estabelece?
Nunca e isso tem o lado bom e mau. É muito fácil uma pessoa chegar ao pé de mim e destruir-me em poucos segundos. Mas não construo, não, e dou-me muito. Na semana passada fui jantar com a família do meu médico porque me queriam conhecer. Nunca montei um boneco na vida e sempre fui assim, não será agora que vou mudar. A menos que vá ao encontro de alguém que seja a antítese de mim e que, por isso, seja uma parede. Adoro construir personagens com paredes porque faço a minha catarse e reconcilio-me com isso.

Mas isso não é uma batotice?
Não é, porque estou rodeada de tantos muros à minha volta que consigo ocupá-los. Vivi com alguns durante alguns anos e conheço-os bem. Às vezes dá-me uma certa repugnância porque não posso nunca condenar e julgar as personagens a que estou a dar corpo. Tenho de estar sempre do lado dela.

Não acho que a palavra seja batotice. Mas é uma vingançazinha [risos].

Da glorificação do mal à violência como efeito de Quentin Tarantino

É curioso que diga que não pode condenar a personagem que interpreta. No último mês, o videoclipe de Valete foi acusado de estereótipos de género e houve quem dissesse que, nas novelas, um caso de violência doméstica terminava quase sempre com o agressor punido de uma forma ou de outra. Tem de existir essa punição para que não seja gratuita?
Não tenho qualquer dúvida de que estamos numa fase em que há a glamourização do mal. O que vende na Netflix e noutras plataformas são os documentários sobre os serial killers e pouco se sabe das vítimas. Concedo que esse lado possa estar a ser explorado de forma desonesta, mas nada impede de haver as duas realidades no mesmo produto.

O que não pode acontecer é ficarmos com uma leitura unilateral. Este exemplo explica melhor: se fizer uma cena com a Paula Neves onde lhe chamo predadora de maridos e, logo a seguir, houver dez mulheres aos gritos umas com as outras a dizer a mesma coisa, então está-se a tratar o homem como vítima, o homem que não tem vontade própria. Sou profundamente contra isso. Desprezo o maniqueísmo e quanto menos maniqueísta e moralista for a leitura, melhor.

Porque o mundo não funciona assim, na verdade.
Precisamente. Não faz sentido glamourizar o mal onde o vilão passa a herói ou onde se perpétua, de forma constante, o estigma de galinheiro histérico em que as mulheres roubam os maridos umas às outras e o homem não tem culpa. De facto existe uma sociedade que ainda é muito machista e preconceituosa. E se a ideia for escrever uma personagem que represente tudo isso, tem de haver o outro lado. Não se pode é transmitir isso como a única realidade possível. Já existe um conhecimento sobre o mundo e sobre as mulheres que já não permite justificar a objetificação.

Não é preciso andarmos a despir o homem e a mulher. Já estamos noutra fase e é uma pena que esta seja uma construção que demore muito tempo a ser feita, porque as pessoas são profundamente reacionárias e não têm consciência disso.

A propósito da violência no filme “Joker”, que estreou-se em cinema na altura desta polémica, Filipe Homem Fonseca, escritor e entusiasta de banda desenhada, disse que existe uma resistência “contra tudo o que sirva de espelho à feiura da sociedade contemporânea, como se o problema fosse o reflexo e não a realidade refletida”. E que, por isso, a arte para servir o seu propósito não deve ser branqueada. Faz-lhe sentido?
Estou de acordo. Não vou citar nomes mas no nosso meio, na nossa ficção e no cinema, eu vejo um olhar profundamente burguês sobre, por exemplo, o nosso Portugal rural. A arte não deve ser branqueada, mas não gosto daquele populismo que diz para esfregarmos uma realidade na cara das pessoas para ver se elas percebem. Acredito muito mais no poder da sugestão do que no poder da mensagem imediata e escarrapachada.

E onde é que está esse meio termo?
É nesse meio termo que eu estou. Não vale a pena adornar demasiado uma realidade, dourar a pílula, branqueá-la…

Não pode ser gratuito?
Não. O gratuito é absolutamente desnecessário e acaba por anular o efeito da mensagem. Gosto que os argumentistas ou os realizadores estejam por dentro da própria história e não a julguem. Cabe-me a mim, enquanto espectadora, ter esse papel.

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Um dos problemas de “Joker”, diziam os críticos, é que podia glorificar ou incentivar à violência.
Ainda não vi, mas tenho algumas pessoas que me deram uma leitura do filme que me interessou. E eu não gosto de filmes com personagens de banda desenhada.

Neste caso trata-se mesmo de cinema de autor.
Foi precisamente isso que me disseram. Que ele não é só o palhaço, que tem uma interioridade que cativa.

A polémica do filme terá partido precisamente daí. Na tentativa de nos fazer criar uma relação de empatia com um psicopata.
Estou a perceber. Na altura quando comecei a criar esta Lúcia [de “Na Corda Bamba”], o Rui Vilhena [criador da novela] disse-me: “Dalila, o público tem de gostar de você.” Eu perguntei: “Mas estás a pedir-me para adocicar a personagem? Eu não o quero fazer.” O que acabámos a fazer foi torná-la mais interessante. E a verdade é que o público se identifica com a vítima porque gosta de ver a personagem mais fragilizada, com problemas. Por outro lado, será possível identificarmo-nos com uma personagem pelas piores razões e não pelas razões morais?

Se essa personagem fizer a expiação de todo o mal que existe na humanidade, é capaz de servir o seu propósito. Não creio que aqui estejamos a falar de branqueamento da arte porque todos nós somos povoados de muita sombra e há, de facto, pessoas que não sentem empatia e não têm remorsos. São patologias e psicoses com as quais vivemos e é importante que façamos uma catarse.

Houve um filme que me colocou uma questão moral muito pertinente e que me fez sair do cinema profundamente zangada comigo própria por ter ficado até ao fim. Refiro-me ao “Funny Games”, do Michael Haneke.

Porque aí a Dalila compactou com a violência?
Quem viu o primeiro filme [lançado em 1997 e que depois teve um remake em 2007], sabe precisamente como é que aquilo vai acabar. O que é que leva alguém a ficar na sala de cinema até ao fim, sabendo que aquelas personagens vão morrer todas e de que forma é que isso vai acontecer. Só pelo simples facto de ficares até ao fim, estás a ser cúmplice. Saí muito zangada e com sentimentos mistos.

Acerca do filme?
E, principalmente, acerca de mim. Questionei a minha natureza.

'A arte não deve ser branqueada, mas não gosto daquele populismo que diz para esfregarmos uma realidade na cara das pessoas para ver se elas percebem'

Nesse sentido, “Joker” é capaz de ser um bocadinho assim. E embora o filme não seja tão violento como as primeiras críticas quiseram fazer parecer, a forma como essa violência é mostrada não tem o propósito de a glorificar. Mas sim condenar e mostrar que é horrível.
Faz-me sentido, mas terei de ver primeiro. Mas ainda nessa linha, há um realizador que toda a gente adora e de quem eu não gosto particularmente, porque parece-me que glorifica a maldade só por uma questão de espetáculo: o Tarantino. E não gosto porque a violência do Tarantino é só um efeito, é uma coreografia onde não há redenção.

Mas tem que haver?
Não acredito que seja estritamente necessário, mas pelo menos tem de haver essa possibilidade. O que me dizem do “Joker” é que as doenças mentais, tal como estão mostradas no filme, não justificam os fins mas existe uma relação causa-consequência.

E nas produções do Tarantino não vejo isso. Existe só porque sim: uma seringa no braço é um efeito visual, estético. E embora não precise do moralismo, irrita-me um bocadinho porque não retiro nada daquela violência. Não pode haver uma leitura unilateral. No objeto de arte, enquanto resultado final, glamourizar o mal só porque sim chateia-me porque nunca se põe o foco no elo mais fraco.

Tem quase tantos projetos de cinema como de televisão. Porque a televisão é, no fundo, o meio que dá segurança e que paga as contas ao final do mês?
[Depois de uma pausa longa] É, mas não só. É a coisa mais difícil de se fazer, o formato mais difícil de se fazer e aquele que é injustamente subestimado — apesar de ser onde mais se trabalha. É o ginásio onde os atores testam todos os músculos possíveis e imaginários. Quem for preguiçoso em televisão não consegue dar mais do que três passos porque é, realmente, a maior maratona. Quando começo um projeto novo, sei de imediato que vou para a guerra. Nesse sentido, a televisão ensina-me coisas todos os dias.

Mas apesar do cansaço, tenho de continuar a sentir motivação naquilo que estou a fazer. Mesmo quando aparecem umas pessoas a comentar coisas como: “Dalila queixa-se do cansaço”. Man, vai lá ver o que é cansaço. É que nem fazem ideia. Sou uma maratonista e quando me queixo, acreditem, é porque chego a casa e já não sei o que estou a fazer, a dizer e a pensar. Entro numa fase da minha vida em que fico em piloto automático, em que a minha vida é relegada para segundo plano. É um cansaço concreto que se manifesta física e psicologicamente e do qual ninguém tem noção.

E não é aquela ideia de me estar a queixar de ter trabalho. Pelo contrário, queixo-me de, se calhar, não estar a ser capaz de fazer o trabalho como gostaria de o fazer porque o volume e a carga horária são tão grandes que já não me permitem isso. A televisão não serve só para pagar contas. Serve também para testarmos os nossos limites e sermos capazes de ver que, se aguentámos aquilo, aguentamos qualquer coisa.

E cada vez mais fica bem dizer que não se vê televisão.
Isso faz-me chorar. Mesmo. Todos os meses há alguém que me pergunta o que é que eu faço. E fico triste, não por uma questão de ego. Só penso: "Porra, estou aqui há 30 anos e nunca passaste por alguma coisa que eu tenha feito?"

Além disso, é quase sempre uma manifestação de snobismo que, aliás, fica muito mal quando manifestado no discurso direto. Tenho vergonha quando não sei o nome de alguém que era suposto conhecer e faço o meu trabalho de casa antes de falar com a pessoa.

É para magoar?
Há quem queira fazer mal e isso é o que me dói mais. Sempre achei que a minha vida ia ser a fazer cinema. Aliás, eu vivia na Cinemateca e estava constantemente lá ao ponto do Dino Alves, o estilista de moda que na altura trabalhava lá, perguntar quem era aquela miúda que estava nas sessões todas. Eu vivia o cinema e tinha idealizado outra vida, ainda sonho em fazer esse cinema neorrealista que me preenchia e isso ainda me faz chorar.

Mas vamos adaptando-nos às circunstâncias e a verdade é que no nosso País há uma realidade muito diferente e em muitos realizadores, alguns até de cinema, paira esta ideia de que a Dalila se vendeu. Desculpem lá, não sou burguesa e preciso realmente de trabalhar. Quando desmistifiquei e relativizei as minhas opções, entrei num processo de paz comigo própria que não foi imediato.

A aposta da TVI para encurtar a distância para a SIC na guerra das audiências

Nesta novela de Rui Vilhena, o homem que pôs Portugal inteiro a perguntar quem matou o António na novela “Ninguém Como Tu”, interpreta uma personagem que é fácil de catalogar como vilã. Faz sentido?
Tudo na vida da Lúcia é uma encenação. É a encenação dos afetos. Quando ela sofre, não sofre realmente pelo outro, mas por ela. Porque eventualmente pode perder alguma coisa. Tenho a certeza de que aquilo que ela quer é a reprodução da fotografia perfeita e é uma construção. Por isso, é fácil criar alguma empatia com ela.

Mesmo os traços humorísticos que lhe dei, é um humor amoral. A Lúcia é capaz de tudo e tive de a preparar para isso. Por exemplo, a Lúcia faz tudo pela família mas se a tiver de destruir para se salvar, ela fá-lo. A perversidade dela é essa. Não acho que seja uma vilã tradicional, conceito com o qual choco sempre, porque isso é mais uma personagem de banda desenhada — com cara de má e que ninguém consegue perceber muito bem as intenções.

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É mérito do argumento?
Sem dúvida. A Lúcia está muito bem escrita porque a equipa que a criou e que me tem apoiado nesta novela é incrível e vou agradecer-lhes todos os dias. Não há nenhuma frase, nenhuma cena, que seja banalizada. E espero que se mantenha assim.

A novela “Na Corda Bamba” prometia ser uma das estratégias da TVI para encurtar a distância para a SIC nesta guerra das audiências.
Ai… [Dalila faz uma pausa, ri-se e põe as mãos à frente do rosto].

Agora não vou conseguir fazer esta pergunta.
Ótimo. Então não a faça [risos].

Vou fazer.
Ok, pronto [risos].

Apesar de ser a grande aposta do canal, tem perdido consecutivamente para “Nazaré”. Não é ingrato passar meses a dar corpo e alma a um projeto e ver que não consegue alcançar a concorrência?
Ok, vamos lá. O nosso projeto não pode ser o bode expiatório de nada. Não ouvi a TVI a pôr as culpas em nós e, se isso acontecesse, teríamos um problema. Não somos o bode expiatório e esta crise da TVI é anterior à “Na Corda Bamba”. Para recuperar, vamos precisar de uma estratégia. Qual? Não sei, não me compete. Sou atriz.

É importante acreditarmos nas escolhas que estamos a fazer, fundamentar bem as nossas opções e não esperar que seja o exterior a validar aquilo que estamos a fazer porque isso é perigoso.  Se calhar, já fiz projetos em que acreditei menos e que as audiências diziam o contrário. É uma matéria muito subjetiva, até porque não são os números que definem a qualidade de um projeto.

“Na Corda Bamba” é, indiscutivelmente, a melhor novela que eu fiz e a melhor que já passou na TVI. Mas temos de ser permeáveis tanto ao prémio como ao fracasso, porque vão existir sempre mil opiniões diferentes.