Os leitores perguntam, a psicóloga Sara Ferreira responde. É assim todas as semanas. Saúde, amor, sexo, carreira, filhos — seja qual for o tema, a nossa especialista sabe como ajudar. Para enviar as suas perguntas, procure-nos nos Stories do Instagram da MAGG.

Querida leitora,

Deixe-me felicitá-la pelo arrojo da sua questão. Na verdade, não é uma questão, mas sim uma “grande questão” que seguramente daria um longo tratado, de tão complexa que é. Mesmo assim, tentarei dar o meu melhor para, pelo menos nos pontos essenciais (e o mais abreviadamente possível) poder de alguma forma ajudar a “deslindar” os porquês desta sua pertinentíssima questão.

Sim, pertinente, infelizmente. Porque os dados (e os casos) que continuadamente vêm a público são alarmantes, para lá de preocupantes, e no mínimo (para quem tem essa coisa linda chamada consciência) deveriam dar-nos que pensar. Pensar em mudar. E por isso, precisamos falar.

Antes do mais, talvez valha a pena fazer aqui uma justa menção honrosa a todos os homens que não agridem nem abusam das mulheres, enfatizando que obviamente não são todos “os homens” que agridem ou abusam, sendo que para definir agressão e abuso, como veremos mais adiante, não temos de cingir-nos apenas aos crimes que sob essa égide são cometidos (no nosso país, então, para lá de demais; a leitora acreditaria que encheria páginas e páginas só com os nomes das mulheres que este ano foram mortas, agredidas ou abusadas pelos respectivos “companheiros”?).

Portanto, há homens e Homens. E são estes últimos aqueles que se pararmos para ouvir o que eles têm a dizer, vamos descobrir que muitos estão, na actualidade, a tentar buscar caminhos de não serem estes mesmos homens que agridem, que abusam, que riem de piadas que nos degradam e que se sentem coibidos a gostar das nudes indevidamente compartilhadas nos grupos de whatsapp, por exemplo. Sim, há Homens que não querem ser estes mesmos homens que secretamente julgam as suas parceiras menos inteligentes, gritam com elas ou apertam os seus braços. Não querem ser homens que agridem, abusam ou violam mulheres.

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As malhas que uma certa cultura tece

Infelizmente, a cultura da violação ou da violência contra as mulheres está mais enraizada do que imaginamos ou gostaríamos de admitir. Se não vejamos.

Identifico alguns pontos que me sinto confortável para destacar (todos eles, em maior ou menor grau, encontramos presentes na nossa sociedade e, se observar, constituem mesmo algumas componentes de uma “certa” aculturação masculina dentro de alguns grupos e códigos sociais por eles partilhados).

O tema da minha dissertação de fim de curso (monografia) abordou a questão dos abusos sexuais de crianças e da violência contra mulheres, bem como investigou os mitos, estereótipos e crenças que existem sobre o assunto que, como verificamos, legitima (de alguma forma) ou são suportativos de uma cultura de agressão contra todos aqueles tidos como mais “vulneráveis” na nossa sociedade (o estatuto de vítima, se pensar nisso, nunca é automaticamente imaginado como sendo representativo da condição masculina, na nossa cultura, não é?).

Por outro lado, esta cultura de violência contra mulheres não é algo do qual as pessoas se orgulham (ainda que isso seja velado), como se a discussão (e a denúncia) dela fosse uma apologia. Pelo contrário, é uma evidência/denúncia que algo silencioso na nossa sociedade é que precisa ser combatido.

E que silêncio é esse? Ou melhor, aquando da sua ausência (deste silêncio), o que é que podemos escutar?

Silenciar para poder escutar

Todos os homens que tenham abusado, agredido, constrangido, sido negligentes em face de qualquer ofensa a mulheres, conivente com piadinhas machistas, fiu-fiu no meio da rua, etc. está a ser conivente e a alimentar esta cultura do abuso (e da violação) de mulheres. E porquê?

Porque reforçam a cultura de que os homens podem intrometer-se sem consentimento sobre a vontade e o corpo da mulher.

Assim, meus caros, não me venham dizer depois que não têm nada em comum com os agressores ou predadores sexuais que todos os dias encontramos nas parangonas do crime, porque o silêncio é um tipo de agressão quando seria necessário algum posicionamento.

Por outro lado, adoramos terceirizar a responsabilidade pelas mudanças urgentes, gritando sobre leis, punição, castração química, ou o que seja; isto é, que o Estado faça supostamente (pois esses meios não resolvem a questão cultural de base) o que nos cabe a todos nós.

Bom, como não faço parte de grupos de homens no Whatsapp, sou pouco familiarizada com certas práticas. Mas o que sei, até por relatos desse tipo no consultório, é que os homens, com mais frequência do que se imagina, parecem reunir-se virtualmente para alimentar uma imagem de objecto das mulheres, separando-as em “mulheres nobres que digo que respeito” versus “mulheres desprezíveis só porque tem a coragem de expressar a sua sexualidade como bem entendem”.

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Se algum leitor que agora me lê, mesmo não tendo agredido, abusado ou violado nenhuma mulher, alimenta o tipo de mentalidade que faz parecer normal uma coisa bizarra que é expor a mulher como carne de matadouro ou, e isto também parece ser muito comum, lhe envia nudes (ou as chamadas dick pics, de que, nomeadamente, a minha colega Joana Amaral Dias parece ter sido alvo, conforme se noticiou – aliás, isso é o tipo de coisa que os abusadores e violadores adoram praticar, e na mentalidade deles é completamente OK fazer isso), então você alimenta a cultura do abuso e da agressão.

Já para não falar de outros comportamentos aparentemente “inofensivos” como interromper uma mulher quando ela está a falar (no contexto profissional isto é flagrante, como mostram muitos estudos que comparam a frequência de vezes com que uma mulher é interrompida por um homem (e vice-versa) em reuniões de trabalho, por exemplo) ou achar que são menos capazes de certas coisas, entre centenas de outros comportamentos quotidianos mas nem por isso menos cabeludos.

Gostemos ou não, em relação à sua questão, cara leitora, estamos todos no mesmo barco (societal). Para cada mulher que morre ou é violada ou agredida às mãos de um abusador, há uma parte de nós, enquanto humanidade, que morre também. Para cada abusador ou violador condenado, há uma parte nossa, de homens e mulheres, que também é culpada.

Cultura e indivíduo são duas faces da mesma moeda. Duas esferas do mesmo problema, pois cultura nada mais é do que a mentalidade colectiva.

Cultura da violência contra mulheres de cada vez que se culpabilizam as vítimas, se legitima ou glamouriza a invasão do corpo da mulher em diferentes graus, o machismo sistémico que diz que as mulheres se devem calar, a palavra violação pode ser aqui representada não como categoria jurídica mas como símbolo de invasão dos homens à dignidade feminina, sendo que o sentido da palavra cultura aqui não é de Cultura com C maiúsculo como sinónimo de erudição ou algo que as pessoas gostam de ter. Julgo importante clarificar isto.

Veja. Até podemos pensar de forma diferente quanto ao facto de como agimos em relação a isso, mas não em dizer que isso não existe.

Quando dizemos, por exemplo, cultura da “chico espertice” (do levar vantagem em tudo) tem o mesmo significado de mentalidade colectiva/cultura. Ou seja, se existe uma cultura que é igual a mentalidade, existe uma mentalidade (cultura) que pode fomentar, na sua raiz, o que nos graus mais extremos se expressa como a acção que legalmente é chamada de crime.

Como carne para canhão

Antes de ser uma categoria jurídica, o abuso ou a violação é uma ação de um homem que investe sexualmente contra uma mulher sem o consentimento dela. E isso inclui o fiu-fiu na rua, o “ela é uma oferecida, logo não preciso perguntar ou dar explicações”, o envio de dick pics não solicitadas, as nudes de mulheres nos grupos de Whatsapp, o “foi violada só porque se pôs a jeito” e muito mais.

Então, para muitos homens que se podem sentir meio que “apadrinhados” por esta espécie de “moral” vigente, o abuso ocorre com mais “facilidade”. A cultura, nestes casos, cria um viés individual, como se fosse uma via que os deixa moralmente anestesiados, para não dizer que quase que endossa um determinado impulso para o comportamento. É típico da “psicologia de massas”, ou naquilo que acontece num jogo de futebol ou num motim, por exemplo. Individualmente, a pessoa não insultaria o árbitro ou não atiraria uma cadeira contra a cabeça de ninguém, mas em grupo ela sente-se legitimada para isso.

No entanto, se acha que isto se deve apenas ao “patriarcado” cruel e impiedoso, apenas formado por um exército de homens vis e bafientos, desengane-se.

As mães – sim, as mães, tal como os pais (legitimados pelas mães) – também são influenciadas por esta cultura de abuso, de machismo e pela cultura de que um homem tem sempre muito mais liberdade “poética” para, se quiser, ser imbecil.

Dizer que alguém foi educado por uma mulher não explica nada, apenas corrobora aquilo que aqui estamos a tratar.

É que quando as pessoas educam os meninos para fazerem o que quiserem e o que bem entenderem, quando passam um pano sobre certas coisas, ou fingem não ver, negligenciando ações, palavras ou intenções abertamente sexistas ou machistas, tudo isso é uma “engrenagem” que faz correr e incentiva, na ponta extrema, o abuso ou a violação.

A civilidade é para meninas?

Vamos lá tentar entender isso melhor.

Pense a leitora na forma como meninos e meninas são educados.

Quer ver? “Meninas, fechem as pernas para sentar!”, “Ai que engraçado quando ele mostra a pilinha!”, “Menina, vamos a ter modos!”, “Eh lá, ele é levado da breca!”…

Claramente, as meninas recebem muitos mais comandos de repressão e reforço negativo do que um menino. Culturalmente, uma mulher é educada para se lançar no seu mundo interior, sendo treinada para ter empatia, preocupar-se e cuidar dos outros.

Elas são domesticadas para se saberem comportar (e calarem envergonhadas), ao passo que a eles dá-se-lhes muito mais permissão para atuarem como pequenos selvagens livres. A cada pequena condescendência do tipo “isso é uma coisa de meninos” ou “os rapazes serão rapazes” ou “um homem não é de ferro” cria-se um homem emocionalmente permissivo com a sua própria impulsividade e futura destrutividade.

Aqui persiste a ideia de que a agressão sexual resulta de motivações sexuais, tendo como consequência que a sexualidade dos agressores (maioritariamente do sexo masculino) seja vista como predatória e (“naturalmente”) quase incontrolável…

Muitas vezes, um menino “bem comportado” é até mal visto pelos adultos (“ai, aquele menino é tão paradinho, não é?...”). Já o contrário ocorre com as meninas: “Olhem como essa menina é fresca! É muito assanhadinha!”

Para as meninas existem mais normas e mais bem estabelecidas. É esperado delas mais verdade, sinceridade, transparência enquanto os meninos são educados para se darem bem na vida, sendo que a verdade neste contexto nem sempre é um valor primordial. Se uma menina mente, é punida; quando um menino mente, tende a ser mais desculpabilizado.

Diga-me agora a leitora, por que razão alguns meninos agiriam de forma diferente, quando crescem?

Lá pelos 25 anos de idade, quando (neurológica e psicologicamente) é esperado que já tenham desenvolvido a capacidade plena de lidar com as responsabilidades, percebemos muitas vezes (dentro e fora do consultório) que ela se encontra sub-desenvolvida.

Não é por acaso que, geralmente, as mulheres sabem nomear exatamente o que sentem, ou pelo menos com mais precisão do que os homens, mesmo que ainda não saibam administrar plenamente as suas emoções. Os homens, em muitos casos, nem sequer sabem reconhecer, quanto mais responder pelo que fazem. Todas essas micro, medias ou macro concessões morais que usufruíram durante anos, serão as mesmas que, mais tarde, utilizarão como desculpa para humilhar, enganar ou agredir uma mulher.

Diante de um qualquer constrangimento ou dilema moral, ele agirá como sempre agiu, afinal. Ou seja, saindo pela coxia de fininho para continuar a fazer o que bem entende, sem pensar (e pesar) as sequelas do que deixou para trás.

Mesmo que este menino, mais adiante, não se converta neste tipo de homem criminoso típico, ele pode bem assim tornar-se num agente de dominação social problemática.

Na fantasia inconsciente dele, continuará com isso a ser o “reizinho” simbólico da mamã, tentando ser na vida o rei de todos os lugares, exibindo-se, interrompendo, agredindo (se contrariado), detentor que é, supostamente, de uma certa superioridade física e/ou moral perante os outros (e, em especial, as outras).

Para a criação destes pequenos (mais tarde, grandes) “Donos Disto Tudo”, urgiria a desconstrução deste arquétipo, ensinando-lhes desde bebés algo tão elementar para uma vida mais saudável em sociedade como empatia, generosidade, respeito, capacidade de gerir frustrações, controlo emocional e compaixão com as suas fragilidades de menino (sem impedir de lidar com emoções mais sensíveis). Se isto acontecesse mais, a uma escala mais evidente, não acho, tenho a certeza de que muitas histórias de agressão, abusos ou violação que vemos, ouvimos e lemos todos os dias poderiam ser evitadas.

Se entendermos o abuso ou a violação enquanto conceito (não apenas uma categoria jurídica, e por favor entenda esta distinção) que remete a invasão do direito da mulher pelo próprio corpo e vontade, então todos esses comportamentos que citei são uma escalada da agressão, da violação. Neste sentido, o assédio é uma expressão da cultura (mentalidade) da violação (desrespeito do consentimento da mulher).

São camadas de ações a diferentes níveis. Para além disso, as pessoas confundem ser vítima com vitimização, na medida em que existe também um preconceito que as pessoas carregam de que uma pessoa mostrar-se frágil ou vulnerável em relação a alguma coisa é errado, pois admirável é parecer forte.

Também as (sim, leu bem, “as”) machistas, as primeiras geralmente a revitimizar/retraumatizar as mulheres abusadas – seja pela imputação de uma falsa culpa, por uma pseudo-responsabilidade sobre os crimes que as próprias sofrerem, seja pelo escrutínio público das suas roupas, etc. – estão bastante contaminadas pela visão machista, mas na verdade, isso nem é culpa delas, pois não vemos/lutamos contra aquilo que não estamos a ver.

A ideia do crime precipitado pela vítima, ou da avaliação do grau de contribuição da vítima para o crime, permanece, ao longo de gerações, bastante enraizada em nós, de forma mais ou menos declarada. Esta, aliás, foi uma das principais conclusões da minha monografia de investigação sobre o abuso sexual de mulheres e crianças, realizada há quase uma década e meia atrás.

Os tribunais não estão isolados da sociedade. Não estão imunes a crenças pessoais nem às estereotipias de género associadas aos crimes sexuais ou sequer a muitos outros tipos de abuso ou violência.

Como a leitora é capaz de perceber, há muitos equívocos e confusões que fazemos individualmente, que, em matéria de abuso e agressão (seja qual for o tipo) contra mulheres, acabam por reforçar um problema cultural, sistémico como este. Um outro equívoco, muito comum, que temos e que importaria esclarecer é quando falamos de violação e imediatamente associamo-la a sexo, a relações sexuais. Falar sobre violação é falar sempre sobre poder, relações de poder, abusos de poder, coerção, humilhação, de um tipo de violência brutal. Noutro sentido, ao falarmos de violação de forma a desmontar estes equívocos socio-culturais é fundamental, pois assim podemos falar de consentimento, de auto-determinação, de liberdade, de dignidade pessoal, de respeito e de justiça.

A hombridade não é para meninos

A hombridade não está no físico, nem está na força. Não está no peso, nem sequer está na altura. Não é o tamanho e nem a grossura. Ou o comprimento.

Não é a maior prova de hombridade vencer pela força física. A nossa cultura priorizou os homens fisicamente vigorosos em detrimento de homens psicologicamente bem resolvidos.

A palavra viril vem da palavra “verdade” que está relacionada com o pensamento e a inteligência. Então, contrariamente à doutrinação colectiva, a virilidade não se trata apenas de algo físico. Quando falha o pensamento, vem o corpo em seu lugar.

O ato (ou a passagem ao ato) começa onde termina a palavra e o pensamento – tanto contra nós mesmos quanto contra o(a) outro(a). Os meus colegas de profissão sabem muito bem do que é que estou a falar.

Hombridade é humanidade. É saber lidar com as diferenças. É saber resolver pelo intelecto.

Neste sentido, masculinidade e feminilidade complementam-se. Os orientais souberam muito bem reunir estes contrários “numa mesma” pessoa (ou imagem/arquétipo/representação) – e sem que isso representasse nenhum risco de ambiguidade sexual para qualquer um deles.

A questão é que a verdadeira hombridade e humanidade não podem ser compradas. O intelecto resulta de um trabalho. Podemos ficar horas a tentar compreender um parágrafo de um livro: aí estaremos a exercitar a nossa inteligência. Neste sentido, às vezes pergunto-me, como será o futuro de uma humanidade que passa o seu tempo – quase todo – a ver vídeos toscos na internet, a consumir conteúdos pornográficos focados exclusivamente no prazer masculino (como ideário de um sexo falocêntrico) e a isentar os agressores das suas responsabilidades?

Cada mulher agredida, abusada ou violada traz como resultado o produto de uma legião de homens e outras mulheres com uma emocionalidade restrita, sufocada, que acabam por adoecer e morrer, ou autodestruir-se pelo caminho, mais tarde ou mais cedo.

Este é um tipo de falência subtil e colectiva onde morre, a cada dia, um pouco da nossa humanidade.

Porém, se queremos ver alguma e efectiva mudança, caberá a cada um(a) de nós ser um agente activo para estancar esta hemorragia.

Até para a semana.