Há histórias que marcam. Que ficam na memória. E para Manuela Silva, na cidade de Errachidia, no sudeste de Marrocos — a sua casa desde maio de 2018 — as histórias são tantas. A geriatra de 45 anos não esquece uma das grandes vitórias que conseguiu alcançar em poucos meses. Numa escola daquela cidade marroquina, tal como em todo o bairro, a água e a eletricidade eram inexistentes. Inexistente era também o calçado das crianças que frequentavam a instituição. Iam completamente descalças para a escola.

Atualmente, e graças ao trabalho de Manuela, o cenário é diferente. “Hoje fico toda consolada por ver que elas vão todas calçadas. Portanto, desde setembro até à atualidade para mim já é uma grande vitória”, começa por contar à MAGG. Quanto à água e eletricidade no bairro com 200 famílias, é algo que para já é economicamente impossível para a associação. “Não temos esse poder para já, mas é um objetivo.”

Há outras histórias, mas já lá vamos. Agora é altura de fazer as devidas apresentações. Manuela Silva é a fundadora e a presidente da Estrela Marroquina, aquela que diz ser a primeira e única associação portuguesa em Marrocos. O nome teve como inspiração a bandeira daquele país africano e o céu estrelado do deserto, que fica a cerca de 120 quilómetros da cidade.

Manuela Silva foi para Marrocos por amor, onde acabaria por casar

Apesar de atualmente viver em Errachidia, Manuela é natural de Angola, ainda que tivesse vindo para Portugal aos 3 anos de idade. O mundo foi a sua casa desde bem cedo: aos 16 anos emigrou para a Suíça, mais tarde passou pela África do Sul, Espanha e Argélia. Foi para Marrocos por amor. “Conheci uma pessoa no Facebook. Eu tinha tirado férias em maio do ano passado e resolvi vir aqui conhecê-lo. Acabei por ficar e agora já somos casados.”

E foi quando chegou à cidade marroquina que percebeu que teria de fazer algo mais. A ideia de criar uma associação começou a surgir. A pobreza era extrema e foi a infantil que a tocou particularmente. Era frequente andar na rua e ver crianças a pedirem dinheiro. São muitas as escolas sem água nem eletricidade e nos bairros onde existe água, as famílias têm apenas 15 litros diários disponíveis para tudo: cozinhar, tomar banho, beber.

“Às vezes comprava roupas para dar às crianças mais pobres, mas comecei a perceber que a necessidade era muito mais do que aquilo que eu poderia ajudar. A pobreza infantil aqui é realmente muito grande”, refere. Depois de cerca de três meses de espera até que a associação fosse reconhecida como tal, a Estrela Marroquina nascia formalmente a 8 de setembro de 2018. O principal objetivo? Diminuir a pobreza. “Se pudermos mudar o mundo de pelo menos dez crianças, já valeu a pena. E se toda a gente o fizer, acho que o mundo já é melhor.” Segundo as contas de Manuela Silva, já são mais de 100 as crianças que receberam apoio desde setembro.

“Às vezes comprava roupas para dar às crianças mais pobres, mas comecei a perceber que a necessidade era muito mais do que aquilo que eu poderia ajudar'

Foi a primeira vez que Manuela Silva criou uma associação. E foi também a primeira vez que levou o voluntariado a este patamar, ainda que tivesse tido o primeiro contacto com este mundo com crianças que estudavam na África do Sul. “Eram crianças com possibilidades económicas, mas que não tinham os pais lá. Portanto, aí nós dávamos outro tipo de apoio, porque eram crianças carentes e nós estávamos ali a fazer um pouco o papel de mãe. Foi aí que começou a surgir o bichinho do voluntariado.”

Quando não há voluntários, Manuela faz tudo sozinha

O Férias Solidárias, que acontece ao longo de todo o ano, é um dos principais programas da associação. Os voluntários são recebidos, durante uma semana, para relaxar, mas também para realizarem atividades com as crianças das escolas e orfanatos com as quais a Estrela Marroquina trabalha. Os voluntários pagam 220€ que já incluem alojamento e alimentação. É uma mistura entre o lazer e o voluntariado.

Nessas semanas solidárias, as atividades procuram ter sempre em conta as aptidões de cada voluntário. Desde o ioga, aos jogos de futebol ou a aulas de higiene oral — aproveitando a presença de médicos dentistas —, são muitas as ações levadas a cabo pela associação. “Vou sempre ao encontro do que os voluntários nos podem dar.”

Em média, a associação recebe todos os meses entre  dez a 12 voluntários, sendo que há alturas do ano em que esse número pode aumentar para o dobro. Os voluntários são de nacionalidade portuguesa, ainda que muitos residam no estrangeiro. “O nosso povo é um povo muito solidário.”

Em média, a associação recebe todos os meses cerca de 10 a 12 voluntários, sendo que há alturas do ano em que esse número pode aumentar para o dobro

Ser voluntário na Estrela Marroquina não exige nenhuma formação. A geriatra de formação considera que “não faz sentido” existir uma cobrança de dinheiro aos voluntários para realizarem o curso de voluntariado, algo que, segundo explica, é pedido por algumas instituições. “Para ser voluntário não é preciso nada. Acho que para dar miminho, carinho e colinho não precisamos de curso nem de nada de especial.”

Mas quando não há voluntários, a Estrela Marroquina não para. Ou melhor, Manuela Silva não para. Continua a prestar apoio às crianças e às suas famílias e distribui água e roupas pelas cidades mais distantes — “o que nem sempre é fácil”, uma vez que Manuela não tem carro próprio. Ir de táxi é a opção mais frequente. “E neste calor acredite que é duro com temperaturas por vezes acima dos 50 graus.”

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A Estrela Marroquina é a Manuela. É a única a trabalhar a tempo inteiro na associação. É ela quem pensa e faz em tudo o que há para fazer e sem retirar, para já, qualquer ordenado. “Isso é algo que está a ser estudado futuramente, porque é algo que me ocupa mesmo muito tempo.”

O marido de Manuela Silva tem um trabalho paralelo à associação, apesar de a ajudar quando necessário. “Por exemplo, antes de cada grupo de voluntários vir para cá, temos uma série de burocracias para tratar e o facto de ele ser natural daqui ajuda. É muito mais fácil para ele falar a língua e tratar das coisas. Depois também me dá apoio quando estão cá os voluntários.”

O marido de Manuela Silva, Nauofal, ajuda-a nas questões burocráticas relacionadas com a associação

Não há hora certa para Manuela começar o dia. Normalmente é por volta das 8h00 e termina de madrugada. Duas vezes por semana, Manuela Silva vai a cada escola saber se “está tudo bem” com as crianças. Também duas vezes por semana é entregue água potável num raio até 50 quilómetros. Quinta-feira é o dia de ir comprar o que falta às crianças com os donativos enviados pelos padrinhos. Depois há o preparar das semanas solidárias, responder a mensagens e emails. À noite, e no âmbito pessoal, a geriatra de 45 anos ainda faz voluntariado com idosos.

A Estrela Marroquina é uma associação sem fins lucrativos. Quando a instituição recebe voluntários, é sempre algum dinheiro que entra, e que posteriormente é canalizado para as crianças. A associação também possibilita o apadrinhamento de crianças que consiste no envio mensal de um donativo no valor mínimo de 5€. Manuela Silva vai percebendo, todos os meses, quais são as necessidades das crianças: sapatos, roupa, comida. Muitas vezes, o valor é também utilizado para dar comida à família dessa criança. Neste momento, há 37 crianças apadrinhadas.

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Já são muitas as vitórias que a associação de Manuela Silva conquistou em dez meses de existência. Uma das mais notórias foi a construção da primeira Escola Estrela Marroquina, que teve algumas ajudas e donativos. Recentemente, chegaram à cidade marroquina algumas expedições de jipe com material escolar que dará para suprimir as necessidades durante mais de um ano. Atualmente, escovas e pasta de dentes, champô, sabonetes e outro material de higiene é o que faz mais falta às crianças de Errachidia.

Com ajudas e vários donativos já foi construída a primeira Escola 'Estrela Marroquina'

É em Marrocos, na cidade de Errachidia, que a vida de Manuela Silva faz agora “todo o sentido”. E é por lá também que vai guardando na memória muitas histórias. De repente, tem dificuldade em especificar alguma. Mas rapidamente completa o raciocínio. A fundadora da Estrela Marroquina recorda que, certo dia, numa escola onde a associação atua, uma menina não queria mostrar as mãos. Depois de alguma insistência, Manuela percebeu que a criança tinha um dedo quase a ser amputado. “Tive de ir falar com a mãe para a levar para o hospital. Hoje em dia a menina já está bem, mas se na altura não tivesse tido esse cuidado, ela teria ficado com o dedo amputado.”

A geriatra confessa que o orfanato é também o seu “ponto fraco”. Apesar de estas crianças viveram em boas condições, sabe que ainda lhes falta muito calor humano. Há mesmo uma criança que gostaria de adotar, algo que não foi possível até agora devido a um entrave: em Marrocos, para se poder adotar, a pessoa tem de se converter ao Islão e ser obrigatoriamente muçulmana. “É uma luta que estou a travar aqui comigo mesma”, conclui.