É comum hoje em dia conhecermos alguém que diz ser intolerante a determinados alimentos ou componentes. A lactose e o glúten são os "alvos" mais comuns. Em vários pontos de venda existem os chamados testes de intolerância alimentar, simples de realizar. Mas será que são assim tão fiáveis?

A resposta é não.

“É certo que existem de facto intolerâncias, mas isso é normal e já existiam há muitos anos. No entanto, agora há uma grande exacerbação de intolerâncias e, de repente, já não podes desfrutar de algo dito ‘normal’ sem estares preocupada”, afirma Carolina Reis, enfermeira, pós-graduada em Nutrição Clínica. Ainda assim, existem de facto algumas patologias que podem apresentar sintomas como é o caso do Síndrome do Intestino Irritável, a Doença Celíaca, Doenças Intestinais Inflamatórias e até o stresse e ansiedade.

“A alergia alimentar existe quando se desenvolve uma reação do sistema imunitário contra certos constituintes dos alimentos, por exemplo, proteínas. Já a intolerância alimentar não envolve uma resposta imunitária, envolvendo essencialmente um defeito enzimático que compromete a digestão eficaz dos alimentos”, explica o médico Pedro Lôbo do Vale.

“Ainda que cause desconforto, a intolerância alimentar não constitui um perigo de vida. Em contrapartida, uma alergia alimentar, caso exista ingestão do alergénio, pode desencadear uma reação anafilática grave, e em casos extremos causar a morte.”

É importante, antes de mais, perceber o que são as intolerâncias alimentares. “A intolerância alimentar consiste numa reação adversa a um alimento habitualmente bem tolerado pela maioria das pessoas”, começa por explicar Pedro Lôbo do Vale, médico e Presidente da Associação Portuguesa de Alimentação Regional e Suplementos Alimentares. “Podem ser causadas principalmente por defeitos enzimáticos no sistema digestivo, por exemplo, a intolerância à lactose, mas também podem resultar da ingestão de certos compostos existentes de modo natural nos alimentos, como a histamina.”

A eliminação do alimento causador da reação é o método de prevenção e de tratamento. No entanto, e mesmo que a intolerância alimentar cause desconforto, não “constitui um perigo de vida”.

De acordo com o especialista, existem três formas de avaliar as intolerâncias e alergias alimentares: através dos sintomas e sinais identificados pela própria pessoa depois de ingerir determinados alimentos; efetuar testes de intolerância alimentar por métodos de bioressonância (medem a “frequência energética/vibracional” de cada alimento e a resposta do organismo a 300-500 alimentos); e realizar análises sanguíneas às imunoglobulinas IgG (avaliam a resposta do organismo a cerca de 300 alimentos).

“Existe muita polémica à volta destes testes, atendendo ao método utilizado e aos custos para os efetuar”, afirma. Uma análise laboratorial pode chegar aos 300€, enquanto que os preços dos testes de bioressonância situam-se entre os 60€. “Apesar de mais baratos, os testes de bioressonância parecem ser menos fiáveis, uma vez que as análises sanguíneas à IgG são mais sensíveis.”

Acontece que, mesmo os testes de análises sanguíneas, utilizados para analisar a concentração de anticorpos Imunoglobulinas G4 (IgG4) para as proteínas de cada alimento, podem dar resultados erróneos. "As IgG4 são produzidas pelo nosso sistema imunitário como forma de reconhecimento às proteínas dos alimentos que consumimos. De forma simples: quanto mais expostos estamos a um alimento porque o consumimos frequentemente, mais elevadas estarão as IgG4, sinalizando determinado alimento como algo a que a pessoa é hipersensível. No entanto, na realidade, a presença de IgG4 está como um indicador de imunológico de tolerância", explica Carolina Reis.

Os testes não possuem evidência científica

O grande problema dos testes de intolerância alimentar é este: não possuem evidência científica. “Do ponto de vista científico existem ainda muitas dúvidas sobre a validade e precisão destes testes, seja por bioressonância ou por determinação das IgG. Enquanto não surgirem mais estudos que avaliem a eficácia destas determinações, não se podem tirar conclusões claras sobre a sua fiabilidade”, refere o médico Pedro Lôbo do Vale.

Segundo a enfermeira Carolina Reis, ancorada em dados da Sociedade Portuguesa de Alergologia e Imunologia Clínica, os resultados fornecidos por estes testes podem mesmo direcionar para enormes restrições alimentares, que poderão acarretar consequências nutricionais significativas. “Citam ainda que os testes não têm qualquer fundamentação científica e, portanto, não têm utilidade na interpretação e diagnóstico de sintomatologia no âmbito clínico, podendo mesmo levar a erros de diagnóstico, como por exemplo, sub-diagnosticar doença celíaca”, afirma.

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Ainda assim, há relatos de que há profissionais de saúde a recomendá-los. “A meu ver, traduz-se numa prática clínica pouco ética. Um profissional de saúde que promova este tipo de testes não baseia a sua prática em evidência clínica e não está a agir em benefício do seu utente. Temos que ser o mais honestos possível e em muitas áreas da saúde a ciência ainda não nos permitiu afirmar diversas coisas”, declara Carolina Reis.

A enfermeira considera ainda que é necessário “educar a população no sentido em que a alimentação pode não ser a causa-cura para tudo”. Como tal, deve ser desfeita a ideia de que estes testes serão o indicado para um utente que apareça “desesperada com os seus sintomas”.

Segundo o médico Pedro Lôbo do Vale, uma intolerância alimentar traduz-se normalmente por:

  • Sintomas de desconforto digestivo (por exemplo, enfartamento, distensão abdominal, flatulência e aerocolia);
  • Alterações do trânsito intestinal (por exemplo, obstipação, diarreia);
  • Problemas de pele, respiratórios ou dores articulares.

O médico Pedro Lôbo do Vale admite que, de facto, há muitos profissionais que não possuem “uma explicação científica para certos sintomas” relatados pelos pacientes. “Contudo, com as medidas alimentares adotadas após a realização dos testes, principalmente dos testes sanguíneos, determinadas pessoas observam melhorias. Por este motivo, alguns profissionais recorrem a estas ferramentas dado que não são ou são pouco invasivas e não têm contraindicações e poderão, ainda, ajudar a fazer modificações alimentares benéficas em alguns casos.”

É também nas redes sociais que surgem cada vez mais questões acerca dos testes de intolerância alimentar. Carolina Reis não tem dúvidas que estes meios podem contribuir para uma difusão errada acerca da validade destes testes e, consequentemente, para um aumento na sua realização.

“As redes sociais são muito boas mas podem — e são — muito perigosas. Ainda hoje recebo frequentemente perguntas sobre este tipo de testes. Ou seja, a velocidade a que a má informação se propaga é superior à informação fidedigna, talvez porque não é aquilo que a maioria das pessoas procura — a resposta/resolução instantânea”, explica a enfermeira, que é também autora de uma página de Instagram onde aborda várias questões relacionadas com a saúde, das quais os testes de intolerância alimentar fazem parte.

Os testes de intolerâncias alimentares “dão dinheiro”

Ainda que não sejam fiáveis, uma vez que não possuem qualquer base científica, estes testes continuam a ser procurados e realizados. Carolina Reis considera que tal acontece porque “dão dinheiro”. “Para além disso há empresas que realmente fazem pressão aos seus trabalhadores para que sejam vendidos. Sejam testes de intolerância alimentar como produtos para a perda de peso. Infelizmente, há muitas empresas que não se preocupam com o consumidor.”

Mas podem ser estes testes perigosos para a saúde? Podem. “Não são perigosos na medida em que a sua realização não coloca em causa a saúde. São perigosos no sentido em que oferecem informação errónea e pouco fidedigna, na qual as pessoas farão as suas escolhas alimentares e, com isso, reduzem ou eliminam alimentos nutritivos e que provavelmente não lhes trazem qualquer desconforto. De forma muito simples: promovem mitos”, sustenta Carolina Reis.

Como saber a que alimentos é que é intolerante?

Para perceber qual é o alimento que está a causar desconforto, a pessoa deverá ser realizar um ‘diário alimentar’, onde sabe o que come e em que quantidades come. As quantidades são fulcrais porque a sintomatologia é dose-dependente”, sugere Carolina Reis. Um exemplo de que a sintomatologia é dose-dependente é a lactose. É comum muitas pessoas não tolerarem um copo de leite, uma vez que o leite é um produto com um maior teor de lactose e digerem sem problemas um iogurte ou queijo. “Porém, é extrapolado o contexto de intolerância ao produto ‘leite’ para todos os lácteos sem perceber a dose que despoletou a sintomatologia.”

A enfermeira recomenda que, depois deste teste diário em que se procura realizar uma associação entre alimentos e os dias em que existiu uma maior intensificação dos sintomas, se deve reduzir o alimento que possa ser o causador durante duas semanas e depois voltar a reintroduzi-lo. “Porém, é muito importante não reduzir tudo e não re-introduzir tudo ao mesmo tempo, para reduzir o efeito confundidor”, finaliza.

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