“Para mim, os alimentos são uma obsessão e compulsão. Há quem se refugie em álcool, drogas. Eu procuro conforto na comida”, começa por contar Ângela (nome fictício), de 49 anos, natural de Lisboa, à MAGG. “Tive fases em que comia às escondidas durante a noite.”

Atualmente a passar por uma fase de compulsão alimentar, tinha 13 anos quando teve o primeiro momento de bulimia. O episódio aconteceu depois de ter sido vítima de bullying na escola “por ser gorda”, numa altura em que pesava 47 quilos.

“Em jovem vomitava logo a seguir a comer, tanto que deixei de ter fome. Geralmente ia cuspindo a comida para os guardanapos. Fingia que limpava a boca. No fim, deitava fora e o que comia, vomitava. Tinha stocks de batatas fritas, pão, queijo e chocolates no meu quarto, no armário, para os ataques de fome”, recorda.

Segundo a médica Paula Pereira, a bulimia “é uma doença do comportamento alimentar. É um distúrbio alimentar. Caracteriza-se pela ingestão desregrada de alimentos, frequentemente sem controlo. Depois destes episódios existe uma tentativa de neutralizar o ganho de peso, pelo que a doente ou vomita ou toma laxantes e até diuréticos. O mais comum é a indução do vómitos após a refeição. Depois, habitualmente, também adota dietas extremamente restritivas.”

Secretária de profissão, Ângela, que também “sempre” sofreu de depressão, recorda que naquele tempo existiam locais próprios onde se ensinava como vomitar, como fazer jejum ou como deixar de comer. “Penso que ainda devem existir, mas lembro-me de pesquisar esses sítios.”

Os pais “não sabiam o que se passava”, uma vez que era uma época em que não se falava destes temas. “Estávamos por nossa conta, os pais não faziam ideia. Não se falava sequer de depressão, nem de bullying. Aliás, naquela altura não se falava de grande coisa com os pais. Se eu aparecia em casa depois de ser fisicamente agredida, era porque tinha andando à bulha. Eram fases de uma adolescente.”

Pedro Brás, psicoterapeuta na Clínica da Mente, entende que a bulimia é uma junção de outras duas perturbações: por um lado, uma vontade “extrema” de não engordar ou de emagrecer “excessivamente” e, por outro, a compulsão alimentar.

“O que origina esta fobia de engordar é, na maior parte dos casos, o bullying sofrido na infância, em que as pessoas são ou foram alvo de gozo por causa do seu peso e da sua imagem corporal”, explica. Estas situações criam “estados de angústia tão fortes” que levam as pessoas a fazer um “controlo da ingestão alimentar para emagrecer, começam a não gostar do seu corpo e entram em dietas muito severas”.

Agora, a pressão ainda é pior porque na altura não havia internet. Hoje em dia é a pressão da televisão, da internet, dos vídeos de música, das Kardashians"

No caso de Ângela, a bulimia e a anorexia andaram de mãos dadas. Com 15 anos chegou a pesar 39 quilos. Deixou de ter menstruação e o seu corpo cobriu-se de penugem — alguns doentes com anorexia podem desenvolvê-la para que o corpo permaneça aquecido.

“Quando o meu médico me disse que ou começava a comer ou me internava, comecei a comer. Aí ganhei peso e comecei novamente a comer demais.” Sofreu de anorexia durante quase dois anos, quando a bulimia regressou. Só viria a atenuar-se quando tinha 22 anos. Ângela ficou com problemas de rins e de tiroide para toda a vida.

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Para a secretária natural de Lisboa, a sociedade daquele tempo também exercia uma certa “pressão”. “Eram as supermodelos e algumas atrizes. Lembro-me de criar um ódio de estimação à Kate Moss, e depois quando a Angelina Jolie apareceu num videoclipe dos RollingStones: eram altas, lindas e tinham uma vida perfeita — pensava eu — e eu era gorda, tinha acne e era uma geek que estudava e lia livros tanto como comia.”

Na opinião de Ângela, atualmente a pressão continua a existir. E até com mais força. “Agora, a pressão ainda é pior porque na altura não havia internet. Hoje em dia é a pressão da televisão, da internet, dos vídeos de música, das Kardashians. A inteligência não conta para quase nada, o que importa é ter o corpo como o das pessoas famosas.”

Assim que entro numa fase mais depressiva, volto à comida. É automático. É o meu conforto instantâneo."

Os episódios de bulimia voltaram “em força” quando Ângela tinha 40 anos, ao mesmo tempo que estava a passar por uma crise depressiva que durou cerca de três anos. Ao longo de todo este tempo nunca teve apoio psicológico em relação aos distúrbios alimentares, apenas para a questão depressiva.

No entanto, e apesar de a compulsão alimentar continuar, neste momento está numa “fase boa”. Vai conversando com quem “passa pelo mesmo” e encontrou no ioga um “refúgio”. “Pouco a pouco [o ioga] vai-me reconciliando com o meu corpo, com os meus traumas e com a parte da minha mente que não me ama e me trai.”

Ainda assim, é necessário manter a vigilância. “Assim que entro numa fase mais depressiva, volto à comida. É automático. É o meu conforto instantâneo. Mas neste momento estou numa fase tranquila q.b., consigo ser racional e controlar tudo.”

“O ‘vamos jantar e falamos sobre isso’ é uma frase deliciosa para a maior parte das pessoas, mas para mim é aterrorizadora”

“Tenho a memória vivida da primeira vez que vomitei. Foi na casa de banho da cave da casa de férias da minha família, que era de apoio a um pequeno quarto de hóspedes. Nunca ninguém ia lá, pelo que, em certa medida, eu tinha mais ou menos consciência de que estava a fazer uma coisa errada, que aquele não era um comportamento normal”, começa por relatar Joana Marques, de 35 anos, à MAGG.

“Inicialmente foi difícil, porque provocar o vómito sem ter a ajuda do organismo — enjoos, náuseas, etc. — não é fácil. Nos primeiros tempos levava os dedos à boca e só posteriormente é que me ‘treinei’.”

O episódio aconteceu no verão de 1997 e Joana, à semelhança de Ângela, também tinha 13 anos. “Tinha atingido o máximo do meu peso — 85 quilos. Embora fizesse desporto com regularidade, uma vez que era atleta federada numa escola de ténis, era incentivada a comer, muitas vezes mais do que o necessário.”

Sinto que a bulimia é sempre ‘uma fase mais complicada’ devido ao desgaste psicológico que implica estar sempre em alerta para que ninguém desconfie do que se passa connosco e à energia despendida a inventar estratégias perante situações que fogem à rotina"

Joana inspirou-se na série televisiva "Models, Inc.", emitida em Portugal em 1995, mais precisamente numa cena em que uma modelo se dirigiu para a casa de banho para vomitar, porque tinha ganho peso e precisava de emagrecer para conseguir competir com as restantes modelos.

“Juntando as peças, na altura pareceu-me a solução perfeita: podia comer tudo o que queria e gostava, vomitar de seguida e não engordar.” Começou a perder peso e um ano depois já tinha menos 20 quilos. A perda de peso não suscitou desconfiança, e foi associada à “mudança de idade”, ao “pulo que os adolescentes dão”.

Joana Marques tinha 13 anos quando teve o primeiro episódio de bulimia

“Nos primeiros anos comia de forma descontrolada, sem me preocupar se os outros percebiam que estava a comer exageradamente. Quando comecei a perder peso de uma forma rápida e repentina, comecei a ser mais cautelosa, porque já tinha consciência de que não era verosímil continuar a comer compulsivamente à frente de todos e perder peso, pois sempre tive tendência para engordar.”

De acordo com o psicoterapeuta Pedro Brás, uma pessoa que sofre de bulimia:

— Come excessivamente (uma pessoa bulímica pode comer 15 pães de uma vez só, por exemplo);

— É alguém que come excessivamente e não engorda;

— Ausenta-se sempre da mesa antes das refeições acabarem. Normalmente está sempre a arranjar desculpas para sair do contacto social para ir à casa de banho.

Foi então que entre os 15 e 16 anos, Joana Marques passou para a restrição alimentar, em que comia uma maçã e um iogurte por dia, por exemplo. Nas refeições em família ou com amigos vomitava o que ingeria. Para si, não havia “outra hipótese” sem ter que dizer que tinha uma doença. “Foi a partir desta altura que passei a ter comigo uma banana ou uma barra de cereais, que comia às escondidas na casa de banho, quando me levantava da mesa para ir ‘fazer um xixi’.” Na realidade, Joana ia vomitar e o que comia nesse dia ou noite era o “alimento SOS” que tinha consigo para não desmaiar de fome ou ter sintomas de fraqueza.

“Sinto que a bulimia é sempre ‘uma fase mais complicada’ devido ao desgaste psicológico que implica estar sempre em alerta para que ninguém desconfie do que se passa connosco e à energia despendida a inventar estratégias perante situações que fogem à rotina”, refere.

Apanhei sustos de morte em sítios nos quais a força do autoclismo não era suficiente para fazer com que a comida desaparecesse e houve vezes em que ‘aquilo’ ficou tudo a boiar e sujeito a ser visto pela pessoa que estivesse à espera”

Pedro Brás, psicoterapeuta na Clínica da Mente considera que, de todas as perturbações alimentares como a anorexia e a obesidade, a bulimia é das “piores”. “Primeiro, porque a pessoa está confortável com este estado: come o que quer e não engorda. Depois, a maior parte das pessoas que vem à clínica fá-lo porque os dentes estão a ficar estragados, ou porque o marido a chateia muito com isso, ou seja, não há uma vontade genuína na mudança e no tratamento. E, mesmo fisicamente, ao olhar para uma pessoa com bulimia, ninguém se apercebe de que está a passar por um distúrbio.”

As horas das refeições em família eram “sempre momentos de ansiedade e de tensão”. Joana sabia que o seu comportamento não era “normal” e “descontraído” e, como tal, estava “psicologicamente ausente” do convívio e das conversas que sucediam à mesa.

“Num dia muito mau podia chegar a vomitar meia dúzia de vezes: pequeno-almoço, almoço e jantar. Nos intervalos, se tivesse acessos de compulsão alimentar comia e vomitava várias vezes todo o tipo de comida de plástico ou de má qualidade que conseguisse comprar — chocolates, batatas fritas, bolos, etc.. Por várias vezes aconteceu estar em sítios onde não havia casa de banho ou nos quais estava avariada. Cheguei a vomitar em caixotes do lixo e no meio da rua. Apanhei sustos de morte em sítios nos quais a força do autoclismo não era suficiente para fazer com que a comida desaparecesse e houve vezes em que ‘aquilo’ ficou tudo a boiar e sujeito a ser visto pela pessoa que estivesse à espera.”

O psicoterapeuta Pedro Brás não consegue constatar se existe um aumento no número de casos de bulimia, uma vez que “quem sofre desta patologia vive assim durante anos em segredo”. Mas há quem tenha outra opinião: Paula Pereira, médica no Hospital Lusíadas do Porto, considera que pela sua experiência clínica se tem assistido a um aumento no número de casos de bulimia. “São cada vez mais frequentes”, diz.

Para além de também se verificarem casos no sexo masculino, este distúrbio alimentar tem uma maior prevalência nas jovens do sexo feminino. Segundo a médica, há ainda a questão da hereditariedade, isto é, “se houver distúrbios alimentares na família direta, elas [jovens] têm maior probabilidade de também vir a desenvolvê-los”.

Joana Marques pratica ioga e meditação há vários anos e em fevereiro esteve cerca de três semanas na Índia, a maior parte do tempo em Rishikesh

Joana, agora jornalista freelancer e assistente pessoal, conseguiu esconder o problema dos familiares e amigos durante vários anos. Só aos 22 anos é que pediu ajuda pela primeira vez e contou à mãe. Foi então que começou a ser acompanhada por um psiquiatra. Mas “pedir ajuda não é a mesma coisa do que querer ser ajudada”.

A jovem foi medicada com fluoxetina — um antidepressivo utilizado para o tratamento da bulimia —, que acabava por não tomar quando a mãe não estava em casa; quando tomava, vomitava de seguida. “Olhando para trás, não consigo perceber como é que enganei toda a gente que sabia da minha bulimia, inclusivamente o psiquiatra, que acabou por me dar alta cerca de um ano depois, como se a doença estivesse controlada.” Desde os 13 anos e até ao momento, Joana Marques já passou por três psiquiatras e confessa que a medicação tem sido uma “grande ajuda” no controlo da bulimia e da sua vida.

De acordo com o psicoterapeuta Pedro Brás, a psicoterapia é o tratamento mais indicado nos casos de bulimia. “O psicoterapeuta vai tentar descobrir as causas da fobia a engordar, o que nestes casos é uma patologia, uma perturbação no ato de engordar, por exemplo, 100 gramas. Depois a psicoterapia também pode ajudar a controlar os apetites da alimentação excessiva.”

A jornalista e assistente pessoal não tem dúvidas em afirmar que, durante mais de 20 anos, a bulimia a “afastou do mundo real” e de tudo o que acontecia à sua volta, bem como da sua vida social que, segundo a própria, em Portugal se faz em grande parte à mesa. Para Joana, era e é mais “fácil” ficar em casa, afastar-se dos amigos, das saídas à noite e dos convívios como uma “simples” ida ao café, do que ter que lidar e enfrentar o imprevisível. Pode haver sempre alguém que pergunte se “queremos mais alguma coisa para além do café — um bolo”.

Segundo a médica Paula Pereira, há sinais e sintomas físicos que vão surgindo:

— Erosão dentária;

— Queimor retroesternal (resultante do refluxo do ácido gástrico para a boca);

— Sintomas pouco específicos como: cefaleia, dor torácica, falta de ar e azia.

“O ‘vamos jantar e falamos sobre isso’ é uma frase deliciosa para a maior parte das pessoas, mas para mim é aterrorizadora. Se antes de estar em tratamento era um tormento comer fora de casa porque cheguei a uma altura em que acabava sempre comigo dobrada sobre mim mesma e com a cabeça enfiada numa sanita, hoje em dia a ‘tortura’ é diferente. Ainda não consigo comer de tudo com conta, peso e medida, e perco muito tempo a ver previamente as ementas de potenciais restaurantes. Só fico descansada se existirem opções 'saudáveis' e que não me engordem.”

Joana deixou de fazer “praticamente tudo” que implicasse ir para longe da sua zona de conforto e do espaço onde ela conseguia ter um certo controlo sobre as “implicações comportamentais que um bulímico enfrenta”: assegurar com “certeza absoluta” de que há sempre uma sanita por perto e ter novamente a “certeza absoluta” de que esta funciona. Viajou muito, ainda que fossem férias curtas. Nunca fez Erasmus e recusa-se a acampar ou a ir a festivais.

Não acredito na cura, talvez porque tenha formado grande parte da minha personalidade e maneira de ser em torno de um transtorno alimentar"

Hoje com 35 anos e autora da página de Facebook "Tripolaridades —Ansiedade, Anorexia e Bulimia", Joana Marques considera que está “melhor”, uma vez que sente que recuperou “algum controlo sobre a bulimia”. No entanto, teve uma recaída “feia” entre fevereiro e março deste ano. “Não consigo precisar o que despoletou esta crise. Talvez um acumular de situações complicadas que se sucederam desde outubro de 2018. Quando me apercebi de que as recaídas iriam continuar se não pedisse novamente ajuda, fui ao meu psiquiatra.”

A primeira recaída, que aconteceu em meados de 2018, consistiu numa ida à casa de banho para vomitar — e não o regresso ao vómito diário e contínuo. Deveu-se ao facto de ter atingido os 52 quilos, “um peso ainda abaixo do que é considerado normal para um pessoa que mede 1,70 metros”, mas que na sua cabeça era “colossal”.

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Joana Marques admite que não acredita na cura. “Não acredito na cura, talvez porque tenha formado grande parte da minha personalidade e maneira de ser em torno de um transtorno alimentar. Mesmo durante o ano e alguns meses em que estive sem vomitar, entre 2017 e meados de 2018, sempre me senti bulímica, como se na minha cabeça continuasse tudo na mesma — a necessidade de controlar o que ingiro, comer o mínimo indispensável para não ganhar muito peso, etc.”, explica.

“Só uma pessoa que sofre de bulimia é que consegue compreender que se tenha prazer com um ato que danifica os dentes e desgasta o esmalte por causa do ácido gástrico — tenho gasto muito dinheiro no dentista a pôr capas e massas nos sítios onde fiquei com as raízes à mostra —, que provoca dores de garganta, de estômago, prisão de ventre e outro tipo de complicações de saúde”, conclui.