Não são famosos, não marcam a agenda da atualidade, não bateram recordes ou apareceram na televisão. Na nova da rubrica da MAGG, os protagonistas são desconhecidos do público, no entanto têm todos uma história verdadeiramente inspiradora. Com força de vontade e determinação, quando tudo estava a correr mal conseguiram transformar-se, reinventar-se e dar a volta à vida. Se quiser contar-nos a sua história, envie um email para leitor@magg.pt. Começamos com Carla Reis.

A 6 de junho de 1984, Carla Maria Reis e Domingos de Sousa Magalhães casaram, para passarem os 37 anos seguintes juntos, em Faro, no Algarve. Apesar de “altos e baixo” inevitáveis de quase quatro décadas lado a lado, gostavam profundamente um do outro.

A 6 de junho de 1986, nascia, Filipe, hoje com 33 anos. Apesar de ser o primeiro filho biológico do casal, era o terceiro naquela casa. Domingos já tinha estado casado e dessa união nasceram Ricardo, 43, e Gonçalo, 40, a quem Carla sempre tratou como filhos, até porque os viu crescer, desde os 2 e 5 anos. Ao núcleo juntou-se Francisco, 32, o filho mais novo de Domingos e Carla.

A 6 de junho de 2018 dá-se o fim, e começo, de um período muito doloroso no seio desta família. Na celebração do seu casamento e do nascimento do filho, Domingos morre, vítima de cancro, um ano depois de lhe serem detetadas metástases em várias partes do corpo. "Faleceu há nove meses. Foi um ano de batalha, em que ele esteve sempre a lutar. Foi muito complicado porque vemos a degradação da pessoa, sempre lúcida e a perceber o que é que lhe vai acontecer", conta à MAGG Carla Maria Reis, 57 anos.

Sempre que um capítulo se fecha, dá-se início a outro. Neste caso, foi um inevitável: o de um luto precoce, que se instalou mais cedo do que seria expectável e que foi fruto de um processo que não demorou muito tempo, mas que trouxe muito sofrimento. Aceitar a tristeza e a saudade da ausência permanente, a sensação de vazio, é uma tarefa que exige um esforço titânico, em todos os casos, mas sobretudo quando a pessoa em questão é o nosso braço esquerdo e direito. É o nosso melhor amigo, pai dos nossos filhos, a pessoa por quem estivemos apaixonados e partilhámos mais de metade da nossa vida — neste caso desde os 20 anos. É quem nos faz companhia num ninho já vazio, porque os filhos crescem e vão à vida deles. Francisco de Sousa Magalhães tinha sido o último a rumar para fora do Algarve, portanto o casal estava sozinho em casa há 12 anos.

Carla Maria Reis, 57 anos, é adepta do cake design e está sempre atenta às novas tendências e formações

“Tínhamos sempre uma cumplicidade muito grande. Eu costumo dizer que éramos mesmo almas gémeas. Depois de 37 anos juntos, a maior parte dos casais vive com uma amizade ou vive por viver. Nós gostávamos mesmo um do outro”, diz.

Antes de avançarmos, é importante percebermos o tipo de pessoa que é Carla Reis. A conversa com a MAGG deu-se ao telefone, mas mesmo aí conseguimos sentir a transparência e energia desta mulher. De lágrima e gargalhada fácil, não é uma pessoa que se deixe ficar. Atenção, porque estamos a falar de alguém que fugia de casa com a irmã gémea para ir ao Avante. De alguém que adora carros antigos e que, durante anos, guiou um carocha e uma Pão de Forma. Falamos de uma mulher que viu o segundo concerto de sempre de Xutos & Pontapés, em 1976, muito antes de a banda se transformar num sucesso. Estamos a falar da mulher que, num intercâmbio em que ficou a morar com uma família de uma cidade do sul da Alemanha, nos anos 80, assistiu ao concerto dos Led Zeppelin e ZZ Top. Ao currículo das bandas importantes, juntamos outros grandes nomes do rock, como Pink Floyd, Rolling Stones, Eric Clapton. A sua cor favorita é o amarelo, o que dá pistas do tipo de personalidade.

A primeira grande mudança de vida deu-se cedo. Nasceu em Angola e em 1974, já sem pai — faleceu quando ela tinha 10 anos, vítima de febre reumática, com apenas 39 anos — voltou para Portugal no rescaldo da revolução do 25 de Abril, como tantos outros milhares, com um braço à frente e outro atrás. Instalou-se no Algarve, porque era aí que se encontrava a família da mãe e foi nesta mesma zona de Portugal, onde vive até hoje, que conheceu Domingos. Ela tinha 20 anos, ele tinha 31. Foi como nos contos de fadas. Apaixonaram-se perdidamente, mesmo apesar de ele ser divorciado e ter dois filhos muito pequenos, que ela tratou (e sentiu) como se fossem dela. Trabalha nos recursos humanos da Universidade do Algarve, mas tem muitos interesses.

"Ou vou para a frente ou deixo-me levar pelo desgosto"

Um deles tem sido um escape para conseguir lidar com a montanha russa dos últimos tempos. Se espreitarmos o Instagram de Carla Reis conseguimos perceber. São dezenas de imagens de bolos, daqueles trabalhados ao pormenor, aqueles que achamos que só podem ser feitos nos programas de televisão de cake design.

“Desde que o meu marido partiu que temos tido um ano muito mau. Eu pensei: ou vou para a frente ou deixo-me levar pelo desgosto. Não é isso que eu quero e que os rapazes querem. Tenho de arranjar formas para me pôr para cima”, diz.

É precisamente aqui que entram os bolos, atividade na qual também investiu mais quando os filhos saíram todos de casa. A criatividade, a concentração e o interesse por estar a par do trabalho dos outros e em acrescentar formações dentro da área ao seu currículo têm sido um pilar de força.

Era Domingos sempre o primeiro a provar as componentes dos seus bolos e lamenta já não ter o seu companheiro de equipa. Mas a angolana não é mulher para se resignar. “É preciso é não parar. Quando estou a fazer os bolos, sinto que estou desligada dos problemas”, conta. “Mas, pronto, chamo uma vizinha para provar”, diz, a rir-se.

É preciso referir que Carla não é propriamente uma caloira na arte da boa pastelaria. “Este projeto dos bolos começa há muitos anos e passou por várias fases. A primeira passou pela pasta do açúcar, que não me realizava.”

Um dos bolos desenhados por Carla Maria Reis

Sempre fez festas temáticas para, como lhes chama, os rapazes. Nelas, claro, aparecia sempre um bolo a condizer com o tema celebrado. Mas, podemos considerar que o interesse se oficializa há cerca de oito anos, quando começa a aperceber-se de que na internet “há uma onda de cake designers” e que há uma série de formações em Lisboa. Faz a primeira na Isto Faz-se, uma loja de artigos para bolos — é tudo muito específico neste tipo de culinária, explica-nos. “Comecei a vir a Lisboa para fazer algumas formações e apercebo-me que consigo fazer muitas coisas com as minhas mãos, que é uma coisa espantosa.”

“Há 15 anos nunca diria que iria meter-me nisto”, garante. Mas, para quem vê de fora, não é assim tão improvável. Carla Reis conta-nos que adora cozinhar. E não são os pratos triviais. Ela gosta de experimentar coisas nova, as tendências todas, de qualquer parte do mundo. “Adoro cozinhar. Adoro mesmo”, diz. “Quando o meu filho Filipe fez anos perguntei-lhe o que é que queria que fizesse e ele disse para eu fazer qualquer coisa. Mas depois desafiou-me a fazer as Poke Bowls. Sabe o que são?”

Há tarte de chocolate sem glúten, bolo de citrinos ou de cenoura com especiarias. Nas suas criações no mundo da pastelaria é regra não ir por atalhos. “Eu faço como os avós, faço tudo”, diz. Ou seja, tudo é feito de raiz, com alimentos verdadeiros, não empacotados. E esta é a linha que tem vindo a reforçar, cada vez mais. Tenta não usar farinhas refinadas, exclui o açúcar branco, preferindo sempre as opções mais equilibradas para a saúde, como farinha de aveia, fruta fresta, açúcar amarelo ou frutos secos.

“Eu sempre o fiz de uma forma muito caseira e sempre com produtos frescos. Eu sou hiper contra tudo o que é empacotado. Isso foi sempre uma característica, que é quase de família. Em minha casa nunca se usaram os caldos Knor, apesar de toda a gente usar.”, relata. “Claro que tudo dá mais trabalho, tudo leva mais horas e o pagamento não é equivalente ao esforço que se faz. Mas essa é uma decisão minha.”

Sobre aquilo que a inspira para fazer os seus bolos, explica que a sua maior referência é a Sofia Fox, que já esteve em Portugal e com quem já fez formações. “Os ingleses, os americanos e os australianos são muito bons. A pessoa vai vendo e a cabeça retém aquilo de que gosta. Eu sempre gostei de coisas manuais. Houve uma época em que fazia bombons. Também faço bolachas, todas muito naturais, sem aditivos nenhuns”, conta. “Mas a minha inspiração vem realmente daquilo que vejo lá fora e depois tento recriar aquilo que me pedem.”

Carla Reis já tem clientes e conta-nos que faz, pelo menos, três bolos por semana, quase sempre ao fim de semana. Não faz mais, explica, porque tem a mãe doente em casa, com Parkinson. A forma como vai recebendo pedidos é tão orgânica como os seus bolos. É muito com base no passa a palavra.

“Uma vez levaram um bolo meu para um restaurante e passaram o meu contacto a alguém que queria fazer-me encomendas, que nem sabia quem era. Há um mês ligou-me a encomendar. Eu gosto de conhecer as pessoas”, diz. “Quanto mais se faz, mais vontade se tem de fazer”, destaca.

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Na questão dos açúcares, é, apesar de tudo, preciso considerar o gosto do cliente: há pessoas que me encomendam bolos e gostam do normal, mas há outras que me pedem para não pôr [açúcar refinado]. Já tenho a receita para o bolo de cenoura que faço muito bem equilibrada, para quando quero fazer um tenho o bolo normal, em que uso a receita da minha avó e vou adaptando, ou ainda a opção em que uso mais frutos secos e sementes, por exemplo.” As entregas cingem-se, talvez por enquanto, a Faro, sendo que o valor de um bolo maior, com mais de um andar, custará entre 50 e 75€.

Em 2013 pediu uma licença sem vencimento da Universidade do Algarve e foi com Domingos para Angola, com o propósito de tentar a sua sorte como cake designer, por causa do projeto Teia Doce da Carlota. “Fui tentar fazer qualquer coisa nesta área dos bolos”, lembra. Só que não foi possível: “Foi muito complicado. Eu tenho dupla nacionalidade, mas o meu marido não tinha, portanto não conseguimos legalizar-nos. Voltámos e eu regressei para a universidade.”

Após a morte do marido, Carla sentia dificuldade em ir aos sítios onde costumavam ir como casal. Mas, relata, já consegue. “Saia da universidade e ia com ele para uma esplanada e conversávamos muito. Já consigo voltar a estes sítios”, diz-nos. Os filhos, os netos — porque “ser avó é um amor incondicional com sabor a cor-de-rosa” — e os bolos têm sido o seu escape. A ferida é recente, muito recente. E como todas as que são novas, ardem. Mas, apesar de ficar a marca eterna, a dor passa e transforma-se. É preciso é que se encontrem estratégias. “Os bolos dão-me mesmo muito prazer fazer.”

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