Kandinsky, Mondrian ou Malevich são alguns nos nomes apontados como os verdadeiros fundadores do abstracionismo. Mas e se tiver sido Hilma AF Klint? Mais conhecida por pintar paisagens e retratos, a verdade é que em 1906 a artista sueca já criava obras coloridas, cheias de formas, espirais e arabescos. O facto de ter pedido que a sua obra só fosse tornada pública 20 anos após a sua morte não ajudou, a sua ligação à espiritualidade também não. "'Espiritual' ainda é uma palavra muito suja no mundo da arte”, explicou o curador Maurice Tuchman ao "New York Times" em 2013.

Até 23 de abril, "Paintings for the Future" está em exibição no Solomon R. Guggenheim Museum, em Nova Iorque. As respostas sobre quem criou o abstracionismo podem demorar a chegar, mas pelo menos Hilma AF Klint começa a receber a visibilidade merecida. A este propósito, a MAGG conta-lhe a sua história e revela-lhe algumas curiosidades sobre a artista.

A artista Hilma af Klint no seu estúdio em Hamngatan, Estocolmo, 1895.

A ligação à espiritualidade começou muito cedo

Hilma AF Klint nasceu em Estocolmo, na Suécia, em 1862 e começou por estudar na Academia Real das Artes de Estocolmo, especializando-se na criação de retratos e paisagens naturais com temas botânicos. À medida que ia iniciando o seu trabalho enquanto artista profissional, foi secretária na Associação de Artistas Femininas Suecas. Foi por esta altura, com a morte da irmã mais nova, Hermina, que despertou o seu interesse pelo espiritualismo e temas religiosos.

Hilma começou por ser membro de grupos espíritas aos 17 anos, mas não os considerou sérios, abandonando-os. De 1896 até 1906, organizou todas sextas-feiras, ao longo de dez anos, sessões espirituais que viriam a servir-lhe de inspiração para a criação de toda a sua obra. Estas sessões eram celebradas com outras quatro artistas femininas e receberam o nome de "The Five". Hilma era a fundadora e a médium do grupo, mediando rituais, cerimónias, episódios de escrita automática (psicografia) e desenhando motivos que iram ser pioneiros de inúmeros grandes artistas abstracionistas e surrealistas. Hilma e as outras quatro artistas eram guiadas pelos seus diversos guias espirituais, que segundo elas, eram espíritos mais conscientes e evoluídos do que os humanos.

À medida que estas sessões espirituais iam decorrendo, o grupo foi esboçando e criando inúmeros trabalhos coletivos, textos e notas, que viriam a servir de base para a criação da grande obra abstracionista de Hilma, “Paintings for the Temple”. No decorrer da sua vida, a artista foi mantendo sempre bem acesa a sua ligação ao mundo espiritual, tendo sido ela também membro da Ordem Rosa-Cruz, da Sociedade Teosófica, do Grupo Edelweiss e da Sociedade Antroposófica.

'Nº1' da série 'Altarpiece', 1915.

De1906 até 1915, Hilma deu vida a 193 pinturas. “Paintings for the Temple” é considerada a série mais importante da sua obra. Nas suas notas, menciona ter sido possuída por espíritos enquanto pintava, recorrendo estes ao seu corpo e energia para transmitir mensagens de outros planos ou dimensões. A artista refere não saber o que estava a retratar, entregando-se ao trabalho de forma segura, sem alterar uma única pincelada.

Hilma não foi a única a dizer ter sido possuída por espíritos

Fenómenos como este não são raros, e até no panorama nacional podemos encontrar exemplos de artistas ligados à espiritualidade. Fernando Pessoa não teve apenas três ou quatro heterónimos como muitos imaginam — teve mais de uma centena. Em cartas, textos entre outros documentos pessoais, é possível encontrar provas de que esta multiplicação do ortónimo por uma infinidade de heterónimos tem uma ligação forte com o mundo espiritual.

Talvez algumas pessoas desconheçam, mas o poeta tinha grandes conhecimentos sobre astrologia, sobre a Cabala Mística, esteve ligado à maçonaria, ordem de rosa-cruz, sociedade teosofista, entre diversas outras organizações espirituais e religiosas. Travou também contacto com o célebre mágico inglês Aleister Crowley, desaparecido misteriosamente na Boca do Inferno em 1930, um símbolo do oculto na época. Fenómenos como a psicografia (escrita automática sob orientação ou incorporação de um espírito) também estão muito ligados à personalidade do poeta, e existem ainda alguns registos que nos levam a aferir que tinha os seus próprios guias espirituais. Exemplo deste facto é a coletânea "O Guardador de Rebanhos", da autoria do seu heterónimo Alberto Caeiro, sobre a qual o autor menciona em cartas que foi escrita numa só noite, enquanto ele mesmo se encontrava num estado de transe, possuído ou guiado por um espírito de um outro plano.

Hilma fez a previsão da Segunda Guerra Mundial

'A Map of Great-Britain” (1932)

Curiosamente, Hilma nasceu numa família protestante, burguesa, muito ligada à marinha sueca e sem quaisquer afinidades com o mundo da arte. O seu avô, para além de almirante, fora um cartógrafo de excelência que a inspirou muito, tendo esboçado inúmeros mapas e publicado livros com mapas dos vários arquipélagos explorados por si na Escandinávia. Hilma seguiu as suas pisadas, e foi pela família apelidada de “cartógrafa do espírito”, tendo em 1932, com base numa profecia sua, realizado uma pintura:“A Map of Great-Britain”. Aqui, aparece esboçado o Reino Unido circundado por chamas e linhas negras, ao mesmo tempo que uma cara pálida vai soprando toda esta energia bucólica.

O sobrinho de Hilma, Johan af Klint, confirma os seus dotes profético-clarividentes, e a verdade é que esta pintura parece provar o que 12 anos mais tarde se viria a confirmar: o início da Segunda Guerra Mundial.

Terá sido mesmo Hilma af Klint a fundadora do abstracionismo?

Existiram certamente outros pintores seus antecessores que já teriam criado obras abstratas, até mesmo já no final século XVIII e início do século XIX. Contudo, Hilma foi definitivamente a primeira a pintar de forma abstrata em séries longas e a perpetuá-las e desenvolvê-las mais profundamente, dando-lhes continuidade e sentido — e não apenas a criar uma ou outra obra abstrata esporádica, conforme os seus antecessores.

Hilma estava cerca de cinco ou dez anos anos à frente dos seus contemporâneos Kandinksy, Malevich, Mondrian, Kupka ou Klee, que foram quem recebeu os louros enquanto fundadores ou perpetuadores do abstracionismo. Em paralelo, e recorrendo a dados biográficos dos vários artistas, é muito interessante analisar que muitos deles, como por exemplo Kandinsky, foram movidos pelo ego, assumindo o seu estatuto de “génios” ou “pioneiros” junto da sociedade. Hilma tinha uma postura imensamente mais humilde, resguardada na sua solidão, e de enfoque na sua busca pela verdade e sintonia com o universo. “A vida é uma farsa se uma pessoa não vive para servir a verdade”, dizia.

Hilma af Klint na Academia Real das Artes de Estocolmo, 1985.

Uma mulher à frente do seu tempo?

Hilma foi sempre muito fiel ao seu propósito de vida, que passava por transmitir ao mundo mensagens espirituais através da arte. Uma mulher bastante misteriosa, viveu sempre de maneira simples e ascética, não tendo casado nem seguido nenhum dos padrões tradicionais da sua época. Tinha os olhos azuis, andava sempre de preto, era vegetariana e dizem que possuía um sentido de humor aprimorado.

A evolução do homem foi um dos seus grandes focos, e manifestou-o com o seu cunho espiritual acentuado, numa constante busca de entendimento e compreensão de quem são os seres humanos e de qual o seu papel no universo. É por isso de destacar o quanto Hilma estava à frente da sua época, já que a sua vida e obra refletem muitos dos temas abordados atualmente: novas relações com o mundo espiritual, a rutura de padrões estéticos e imagéticos e a criação feminina no panorama mundial artístico.

Um incêndio quase destruiu a sua obra

Quando morreu em 1981, Hilma deixou 1.200 pinturas, 100 textos e 26 mil páginas de notas, acompanhadas de uma mensagem clara e concisa de que toda a sua obra só poderia ser dada a conhecer ao mundo tendo passado 20 anos da sua morte – as pessoas não estavam preparadas para que isto acontecesse antes.

E esteve quase para não conhecer. Após a sua morte, a casa e estúdio onde se encontrava toda a sua obra estiveram prestes a ser incendiados pelo dono do terreno onde vivia. Senão fossem alguns dos seus familiares a recolher as suas pinturas, notas e textos, tudo teria terminado em cinzas.

Apesar de não terem sido perdidos os preciosos anos de trabalho de Hilma, as suas obras foram guardadas num pequeno sótão dos seus familiares. Durante 20 anos, o seu legado ficou exposto a temperaturas geladas no inverno e temperaturas até aos 30 graus no verão. Pode dizer-se que foi um verdadeiro milagre a sua sobrevivência até aos dias hoje — há até quem diga que os seus guias espirituais ficaram por cá para cuidar também da sua obra.

A primeira vez que o público viu a sua obra foi em 1986, com a exposição “The Spiritual in Art”, em Los Angeles. No entanto, só passadas quase três décadas (2013), quando a exposição “Pioneer of Abstraction” teve lugar em Estocolmo, é que a artista obteve o seu merecido reconhecimento internacional. Um ano antes, Hilma tinha sido excluída de uma grande exposição comemorativa do abstracionismo no MOMA, em Nova Iorque.

Terá sido pela sua ligação demarcada ao mundo espiritual? Ou por Hilma ser uma mulher, e ainda para mais a mulher que fundou o abstracionismo? Em 2016, a exposição “Painting the Unseen” em Londres foi um marco histórico na divulgação da obra da artista, e um importante polo de divulgação e criação de conteúdos à sua volta que irão certamente facilitar o estudo e a valorização da sua obra no futuro.

 'Youth', da série 'The Ten Largest',1907.