Dezenas de doentes ocupavam as camas do hospital Curry Cabral, muitos internados com a mesma doença. Era uma infeção, causada por um vírus, que evoluía muito rapidamente. Estávamos entre o final da década de 80 e início dos anos 90, época em que as soluções terapêuticas eram escassas e cheias de efeitos secundários. Enfrentava-se o desconhecido e havia pouco a fazer. As doenças oportunistas — tuberculose, pneumonia, tumores, cancros — aproveitavam-se de um sistema imunitário cada vez mais fraco e deixavam vestígios. A pele ficava com manchas e feridas devido a infeções, como o sarcoma de kaposi ou às dermatites. O peso ia diminuindo. A língua sofria lesões. Com isso, vinha a descriminação. E a morte, para muitos, era certa, e apenas uma questão de dias ou meses.

O retrato das vidas com o vírus da imunodeficiência humana (VIH) nos anos 80 e 90 está longe de ser sequer semelhante àquele que se vê em 2018. Além de métodos de prevenção mais eficazes, como o preservativo ou a profilaxia, hoje os doentes infetados por este vírus têm uma qualidade e uma esperança média de vida muito superior, desde que a doença seja detetada a tempo e controlada. Só precisam de tomar um comprimido por dia e, se forem responsáveis e tudo correr bem, as visitas ao hospital, acontecem de seis em seis ou oito em oito meses. É uma doença crónica, como tantas outras.

O que caracterizou esta doença foi o modo como surgiu: foi de uma forma rápida, agressiva, que gerou um pânico que só mais tarde se desvaneceu."
Odette Ferreira. A mulher que diagnosticou António Variações e levou amostras de sangue no bolso da algibeira
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Há 30 anos não. Os doentes tinham de tomar mais de dez comprimidos por dia. O primeiro antirretroviral, o AZT, gerava toxicidade no organismo — causando imensos efeitos secundários — e criava resistência. "O caminho era a morte e não havia mais a oferecer, a não ser uma relação especial com o doente, na luta contra este adversário", recorda José Malhado, internista, especialista em Infecciologia e membro da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna, que pela altura do surto teria 40 anos. É ele que, décadas mais tarde, e no Dia Mundial do Combate à Sida, que se celebra este sábado, 1 de dezembro, ajuda a MAGG a perceber como era viver com esta doença nas décadas em que se disseminou.

"O que caracterizou esta doença foi o modo como surgiu: foi de uma forma rápida, agressiva, que gerou um pânico que só mais tarde se desvaneceu", diz. "Atingiu países pobres e ricos, atingiu todas as camadas sociais e estava ligada ao comportamento. Vitimou figuras conhecidas universalmente, da área da cultura ou do desporto, o que levou a um grande investimento, mobilização de recursos e motivação no sentido de investigar soluções terapêuticas, o que veio a ser conseguido e foi uma melhores vitórias da medicina."

Mas fica a memória daquilo que foi conviver com pacientes a quem restava pouca esperança e soluções. "A ideia de que o progresso chega sempre tarde é aplicável a muitos dos doentes desta época, do final dos anos 80 e 90", diz. "Tenho casos bastante presentes."

A história do Ricardo, da Cecília, da Lucília e da Rita

Quando José Malhado conheceu Ricardo ele tinha perto de 25 anos. Era engenheiro, homossexual e tinha contraído o vírus do VIH. "Era novo. Tinha acabado de fazer a tropa", lembra. A particularidade deste paciente é que levava sempre livros para dar a conhecer ao médico. "Ele gostava de mim e mostrava-me sempre literatura", recorda.

"Estava transfigurado." Como tantos outros doentes infetados com a doença nesta altura, tinha sido atacado com infeções oportunistas, as tais que se aproveitam de um sistema imunitário débil, que eram, muitas vezes, a causa da morte do paciente. "Eram muitas vezes estas infeções que os levavam ao médico e acabavam por causar-lhes a morte", explica José Malhado. "Hoje raramente ocorrem. A medicação tomada conduz a um estado imunitário satisfatório."

Doentes com VIH eram ostracizados. Era uma doença associada à homossexualidade, capaz de deixar o corpo coberto de feridas. "Ele sofria de muita discriminação, porque tinha muitas infeções na pele."

Surgiram muitos [doentes com sida] ao mesmo tempo. Era uma doença sobre o qual se sabia pouco.  Foi um boom. Não havia profilaxia, nem proteção [preservativo]."

Ricardo "vivia muito só". O seu grande companheiro era o gato, com quem dormia. "Proibi-o de fazer isso", relata o médico. Em causa estava o risco de contrair toxoplasmose, um parasita que se desenvolve no intestino destes animais, que infeta humanos e que constitui uma das doenças oportunistas em pessoas com imunodeficiência.

A resposta deste doente ilustra bem a solidão que viva. "Respondeu-me: 'Oh, doutor, mas eu não tenho mais ninguém, só o meu gato'. E eu deixei-o." Morreu pouco tempo depois.

"Os grupos de médicos que tratavam estes casos não tinham problemas de discriminação", adianta. A realidade era inversa: a ligação entre o médico e o paciente era muito forte. As visitas eram regulares, lutavam juntos contra o mesmo, ainda que soubessem que as soluções eram poucas, apesar de a esperança média de vida variar. Uns morriam passados poucos meses, outros passados alguns anos. Tudo dependia do estado e da força do sistema imunitário.

"Surgiram muitos [doentes com sida] ao mesmo tempo. Era uma doença sobre o qual se sabia pouco. Foi um boom. Não havia profilaxia, nem proteção [preservativo]." De acordo com o médico, afetava sobretudo a comunidade homossexual (a mucosa retal é mais frágil e, no sexo anal, o contacto com o pénis pode criar mais ferimentos) e toxicodependente (pela partilha de agulhas).

Cecília não era homossexual e também não era dependente de drogas. "Era viúva de um doente que faleceu com VIH", conta o internista. Segundo o médico, o marido recebia transfusões de sangue regulares para o tratamento de hemofilia, uma doença "em que existe uma anomalia permanente no mecanismo da coagulação do sangue", de acordo com a Associação Portuguesa de Hemofilia. "Foi contaminado com o vírus pela transfusão de um lote fator 8", diz o médico. E passou o vírus à mulher, que, mais tarde e já com outro companheiro, foi paciente de José Malhado.

"Esta senhora, quando eu estava no parque de carros do hospital a lutar com o rádio, passou com o companheiro que era eletricista de automóveis e quis ajudar-me, tentando recuperar a avaria." Depois de conseguir a indemnização do Estado pela contaminação do marido, fez uma surpresa ao médico: "Ofereceu-me um rádio para o carro", lembra. "Seis meses depois morreu. Devia ter 30 anos."

"Hoje as transfusões de sangue são muito cuidadas. É um processo muito rigoroso. Antigamente, isto não acontecia", explica Telo Faria, internista e coordenador do Núcleo da Doença VIH da Sociedade de Medicina Portuguesa.

Lucília tinha menos 10 anos e também foi infetada por esta doença. "Foi uma epidemia", diz José Malhado. "Foi o marido, que era cadastrado, que a contaminou. Tentou vender os dois filhos que tinham." Era empregada doméstica de uma pessoa que tinha uma editora. E a cumplicidade que existia entre os médicos e pacientes levou a que abraçasse um último desafio: "Combinámos que ela ia escrever um livro sobre a vida dela. Era uma motivação para continuar. Ela não queria morrer sem escrever o livro. Levava aquilo a sério. Tinha de ser assim", recorda. Escreveu, mas o tempo de vida não foi suficiente para que o terminasse. "Não conseguiu acabar o livro. Acabou por falecer."

A história de Rita mostra o lado dos que sobreviveram. Era toxicodependente, mas "ritmo e energia" não lhe faltavam. "Um dia zangou-se comigo porque me atrasei e ela tinha de ir para o esticão com o namorado, no Estoril. Tinha de ir roubar", diz. "Uma vez até me explicou como é que ia ser o roubo de determinado dia. Eram relações muito fortes."

Contra as probabilidades, a Rita viveu para assistir à evolução dos tratamentos e tirar proveito deles. "Acompanhei-a durante muito tempo. Não sei nada dela há dois anos", explica. Provavelmente estará viva. "Sei que teve filhos e que está empregada. Foi provavelmente o seu carácter de otimismo que a fez chegar aos nossos dias."

Antes tomavam-se dezenas de comprimidos por dia. Agora basta um, todos os dias

"O que mais mudou na história da Infeção VIH foi a medicação, com aumento da potência, aumento da eficácia, redução dos efeitos secundários, redução do número de tomas diárias e redução do número de comprimidos", diz Telo Faria.

Mas vamos recuar 30 anos. Em 1987 a Federal and Drug Association aprovou o AZT (Zidovudina), o primeiro antirretroviral utilizado no tratamento do VIH. Os benefícios eram notórios, mas as dosagens eram altas e provocavam toxicidade ao organismo e vários efeitos secundários. Em 1991 surge uma nova opção, o DDI ou Didasonina, cujos efeitos colaterais mais comuns eram diarreias, erupções cutâneas, febre e vómitos. Tal como referiu José Malhado, a mobilização de recursos nesta época para se encontrarem soluções eficazes foi grande. Tanto assim era que, em 1992, já existia mais uma solução: o DDC ou Zalcitabina, com consequências no organismo menos violentas.

Contudo, foi em 1996, que se deu a grande mudança de paradigma na terapêutica. "A grande viragem do VIH aconteceu no Congresso de Vancouver", explica Faria Telo. É aqui que se faz a proposta da terapêutica tripla, em que se combinam três comprimidos. Ensaios clínicos comprovaram que, desta forma, se conseguia controlar a doença. Entretanto, aparecem no arsenal terapêutico mais antirretrovíricos, como a Neviparina e Ritonavir.

[A terapêutica tripla] Interrompe o ciclo reprodutivo do vírus e impede que ele se reproduza no organismo. Se houver boa adesão, e o doente for responsável e cumpridor, vamos ter uma carga viral [numero de vírus existentes do sangue] indetetável no sangue periférico."

A partir daqui, a taxa de mortalidade em doentes com VIH desce. Hoje, há vários esquemas possíveis, ou seja, vários antirretrovirais que se podem associar, "de acordo com o perfil do doente" explica Telo Faria. Há um conjunto de duas substâncias presentes, o "backbone". A estas, associam-se uma de três opções: um inibidor da integrase, um inibidor protease (existem vários, mas o único de primeira linha é o Darunavir) ou ainda, de outro grupo, os não-analogos inibidor da transcriptase reversa.

"São três medicamentos num só. É um cocktail, que basta tomar uma vez por dia, todos os dias", explica. "Interrompe o ciclo reprodutivo do vírus e impede que ele se reproduza no organismo. Se houver boa adesão, e o doente for responsável e cumpridor, vamos ter uma carga viral [numero de vírus existentes do sangue] indetetável no sangue periférico." Atualmente, também há cada vez mais estudos que mostram que, com novos esquemas terapêuticas duplos, também se consegue a mesma potência e eficácia do que a clássica terapêutica tripla.

Mas ele mantém-se no corpo: "Há locais do organismo, os santuários, onde ele [o vírus] está armazenado, que a medicação não consegue atingir." O dia em que se chegar a esta espécie de depósitos será histórico — muito provavelmente, significará que já há cura para a sida.

Atualmente, os efeitos secundários são praticamente nulos, "sem comparação possível", face ao que se vivia há menos de dez anos. "Alguns eram pesadíssimos. Tremendos, mesmo em termos estéticos", lembra o internista. Nesta altura Telo Faria recorda a lipodistrofia corporal, uma das tais consequências, que criava uma alteração na configuração do corpo: nas zonas com mais gordura, como as bochechas, nas mamas (no caso das senhoras), nas nádegas e nas coxas, havia uma redução fortíssima de músculo e de gordura, que passava mais para a parte abdominal e do pescoço", explica. "Ainda assim, há estudos que mostram que não era só da medicação, ou seja, que o próprio VIH podia fazer isto. "

Agora está tudo diferente. O VHI pode ser bem controlado e, segundo Telo Faria, um doente pode ter "uma esperança de vida quase igual à população em geral." Mas há regras. Os portadores do vírus têm de ser responsáveis e fazer a medicação todos os dias, à mesma hora. "Sempre que não se toma a medicação, o vírus vai mudando um pouco a sua configuração, sofre mutações. Essa mudança cria resistências e volta a carga positiva no sangue periférico." Disto poderá resultar uma nova medicação, possivelmente já com vários comprimidos em vez só de um e várias tomas diárias.

Hoje a própria probabilidade de transmissão do vírus é muito mais reduzida, caso os doentes cumpram a terapêutica. "Há muitos estudos que dizem que quando carga vira é indetetável, as hipóteses de transmissão são de quase 0%. Não é 0%, mas aproxima-se", explica. "É um grande avanço", termina. Ou, como diz José Malhada, "uma grande vitória."

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