Natural do Algarve, a chef Lúcia Ribeiro nunca teve medo de pôr as mãos na massa e seguir o seu sonho de ser importante na Cozinha. Antes, formou-se em Gestão Internacional, construiu família e só depois vestiu a jaleca branca e foi aprender com os melhores. Estagiou em vários restaurantes londrinos, ao lado de chefs reconhecidos e premiados com estrelas Michelin, mas depois a chef de 40 anos decidiu regressar.

Hoje, Lúcia Ribeiro é head chef da Mimo Algarve, uma inovadora escola de culinária de topo inserida no Pine Cliffs Resort. Foi aqui que a MAGG teve oportunidade de falar com a chef algarvia, de sorriso fácil e personalidade cativante. Completamente dedicada a este novo projeto, Lúcia Ribeiro falou das dificuldades em vingar em cozinhas de restaurantes de topo portugueses apenas por ser mulher, da discriminação sexual que ainda existe no nosso País neste meio, da fama de mauzões dos chefs, do "Pesadelo na Cozinha" e até das estrelas Michelin.

Como é que entrou no mundo da cozinha?
Muito mais tarde do que é comum. Sou licenciada em Gestão Internacional em Londres, mas a cozinha foi uma paixão minha desde criança, cresci dentro da cozinha da minha avó e da minha mãe, e comecei logo a fazer coisas — desde os oito anos de idade que quem fazia o jantar lá em casa era eu. Sempre gostei muito de trabalhar com os nossos produtos locais e de inventar coisas, e tinha o sonho de trabalhar nesta indústria.

Mas fez um curso universitário que nada tem a ver com cozinha.
Fui para a universidade com o intuito de ter um bom currículo, mas sempre com o meu coração a pensar na cozinha e com a ideia de “qualquer dia arrisco”. Acabei por ir para Londres em 1994, terminei o ensino secundário lá, fiz a universidade e comecei a viajar muito pelo mundo. Cheguei a ir para os Estados Unidos trabalhar na indústria dos gins e entretanto voltei para Londres. Fiz um curso de alta cozinha na Le Cordon Bleu em 2013, saí da escola e comecei a estagiar em restaurantes de topo. Estive no City Social com o chef Paul Walsh, estagiei em vários locais, incluindo o restaurante de três estrelas Michelin do chef Gordon Ramsay e, quando regressei a Portugal em 2017, estive no Villa Joya durante cerca de um ano.

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Voltou para Portugal com a ideia de trabalhar apenas em restaurantes com estrelas Michelin, mas não foi isso que aconteceu.
A realidade portuguesa é completamente diferente. Encontrei muitos obstáculos apenas por ser mulher. Nesses restaurantes com estrelas, eu era das poucas mulheres na cozinha, e torna-se um ambiente bastante masculino. Mas o grande problema é que ninguém nos dá o valor devido. Existe uma coisa na cozinha, entre os homens, de se apoiarem uns aos outros mas, principalmente aqui em Portugal, existe uma falta de apoio às mulheres neste meio. E depois quando estas também querem outras coisas como família, crianças, torna-se muito complicado trabalhar 12 horas por dia com uma família em casa. Eu por acaso já entrei nesta vida muito mais tarde, hoje os meus filhos já estão crescidos, e tenho um marido que me apoia bastante nesse aspeto.

Para mim, as horas e a pressão nunca foram um obstáculo, nunca foram um problema. O problema é eu querer ser mais, fazer carreira disto, querer aprender muito, muito, muito e querer mais do que aquilo que me foi possibilitado no nosso País. Mesmo em conversa com outras colegas, elas sentem o mesmo que eu.

Só o facto de ser mulher impediu-a de chegar mais longe?
Sim. Há mulheres que têm conseguido chegar ao topo em Portugal, mas algum motivo existe para não existirem muitas chefs mulheres no nosso País, a discrepância para com os homens é marcante. Quantas mulheres temos em Portugal com estrelas Michelin? Zero. Quantas mulheres de topo, na área da cozinha, é que você conhece? Duas ou três. É estranho, não é?

Nós olhamos lá para fora, principalmente para países da Europa, e vemos mulheres com duas e três estrelas, mulheres que estão no topo da sua carreira, e que tiveram de abdicar de muita coisa para lá chegarem. Porque é que a nossa mentalidade não nos permite fazer o mesmo cá em Portugal?

O conceito inovador da Mimo, que promove experiências culinárias de topo, nasceu em San Sebastián (Espanha), no ano de 2009. Nove anos depois, e após aberturas em Sevilha e Maiorca, a escola de culinária chega ao Algarve, mais precisamente ao Pine Cliffs Resort. A unidade hoteleira de cinco estrelas acolhe o quarto espaço da marca Mimo, o primeiro em Portugal, e desde o início do verão que Lúcia Ribeiro, head chef do Mimo Algarve, coloca na mesa os sabores nacionais.

A marca aposta numa abordagem gastronómica de alta qualidade, marcada por uma relação muito próxima com o cliente (sejam eles hóspedes do resort ou apenas visitantes da Mimo), não fosse amor e carinho o significado da palavra espanhola que dá origem ao nome deste conceito.

Diariamente (e por marcação), a Mimo Algarve promove aulas de culinária (destinadas a grupos e famílias, com uma componente muito interativa e “mão na massa”), provas de vinho e Supper Clubs (um momento de showcooking de uma refeição completa, onde os participantes interagem com os chefs, que explicam cada passo, mas é uma experiência menos prática e mais social).

Estas experiências fundem a culinária portuguesa, com ênfase nos produtos algarvios e uma abordagem à cozinha de topo. Exemplificam técnicas, partilham dicas culinárias, discutem pratos e diferentes combinações. No final, todos os participantes recebem as receitas dos pratos cozinhados.

As aulas de cozinha estão disponíveis a partir de 95€ por pessoa (crianças pagam 33€), enquanto os Super Clubs têm o valor de 65€ por pessoa; ambos os modelos têm bebidas incluídas. Para marcar uma aula ou obter mais informações, deve enviar um e-mail para algarve@mimofood.com.

Acha que as mulheres ainda são prejudicadas por quererem carreira e família?
Acho que sim, mas eu acredito que é possível fazer tudo.

Não sentiu essa discriminação em Londres?
Em Londres também pode existir alguma descriminação inicial para com as mulheres, mas valoriza-se muito o mérito, e se o meu chefe vê que eu trabalho mais que os outros, ele próprio vai-me empurrando para a frente e ajuda-me a chegar onde eu quero. E o trabalho de equipa, lá fora, é uma coisa fantástica — é quase como se fôssemos apenas uma pessoa.

Voltando a essa fase da sua vida, principalmente à época que passou na cozinha do Paul Walsh. A cozinha está cada vez mais na moda, e há uma imagem de glamour dos chefs. Mas como é que é a realidade e o que é que aprendeu nesses dois anos?
Aprendi tudo, passei por todas as secções da cozinha do restaurante. Cheguei lá acabadinha de sair da escola, não sabia nada, comecei a fazer coisas muito básicas. E o primeiro mês que uma pessoa está numa cozinha destas… Medo. Não sabemos bem com quem é que podemos falar, com quem é que não podemos, como é que as coisas são ou não são, e é um ambiente de muita pressão. São muitas horas diárias, quase sem intervalos, uma pessoa tem de ter um estofo muito grande. O que o chef diz é válido para tudo, nem vale a pena argumentar ou discutir. É o que os chefs querem, e pronto. A hierarquia funciona, e quando se começa por baixo, toda a gente me pode dizer o que fazer, desde que esteja acima na hierarquia, claro.

Demorei o primeiro mês a ambientar-me mas, assim que percebi por onde é que me podia mexer e aprender ao máximo, o Paul [chef principal do restaurante] entendeu imediatamente as minhas capacidades e começou a testar-me e a perceber até onde é que eu conseguia ir.

Então ia-me dando corda, e eu esticava. Foram dois anos de luta, mas sempre com uma grande vontade de continuar a aprender cada vez mais, sempre que eu queria mudar de secção para adquirir novas competências, havia sempre alguém que me ajudava, e o próprio Paul tinha o cuidado de me ensinar a maneira dele de fazer as coisas — dedicou o seu tempo a ensinar-me a fazer muita coisa técnica dentro da cozinha. E sempre acreditou que eu ia conseguir fazer tudo. Mesmo quando eu não acreditava em mim, ele tinha essa fé e confiança.

A cozinha é um mundo muito complicado, onde se trabalham muitas horas. Qual foi o máximo de tempo que passou num restaurante?
15, 16 horas, chegou a acontecer. Mas atenção, porque eu queria, e não porque me era imposto. Queria chegar mais além, fazer tudo na perfeição. Então preferia chegar antes dos meus colegas, ter a cozinha só para mim para poder estar à vontade a fazer os meus trabalhos mais técnicos antes de entrar naquele ambiente de pressão.

Em restaurantes de topo, existe muita pressão acrescida relacionada com as estrelas Michelin?
Depende um bocadinho de que país é que estamos a falar. Existe sempre pressão, mas em Portugal acho que ainda há alguma margem de erro para se flexibilizar, em Inglaterra não há margem nenhuma. É como é e ponto final, só se tem uma hipótese de fazer a "mise en place". Tem de se acertar à primeira, até porque não se dá azo ao desperdício — aliás, o desperdício é algo que, lá fora, não existe dentro de uma cozinha. Tudo é reaproveitado, tudo é utilizado.

Lúcia Ribeiro em ação, numa aula de culinária na Mimo Algarve

Acha então que em Portugal ainda existe muito desperdício?
Acho que sim, ainda existe um bocado. Pode haver mais aproveitamento, mais organização, acho que ainda estamos um bocadinho aquém do que se faz lá fora, apesar de a nossa comida ser fantástica. A nossa matéria-prima é incrível, o nosso peixe, a nossa carne, os vegetais são muito melhores do que no estrangeiro. Mas a nível de organização de cozinha, acho que os britânicos, os alemães, são mesmo muito bons.

Os chefs têm fama de bad-boys

Em Londres, também estagiou no restaurante de três estrelas do Gordon Ramsay, um chef com uma personalidade marcante. Lidou de perto com o chef?
Não, mas aprendi muito com o chef responsável desse restaurante. Essa época foi uma escola incrível para mim, o chef era uma autêntica máquina.

Em Portugal, o “Pesadelo na Cozinha”, com o chef Lubjomir Stanisic, partiu de um formato internacional protagonizado pelo chef Gordon Ramsay. Qual é a sua opinião sobre este tipo de programas e sobre a forma como estes chefs de topo se expõem na televisão?
Eu acho que os programas são um exagero da realidade, é a minha opinião. Mas essa questão do vilão, do bad-boy, em todas as cozinhas existe um bad-boy. Não houve uma única cozinha com estrelas Michelin em que não existisse alguém com esse estilo e essa personalidade. É uma forma de se lidar com a pressão, e tem de ser assim. Hoje em dia, até acredito que são mais os sous-chefs que assumem essa figura. A máquina tem de funcionar, tem que haver respeito e, por vezes, as pessoas assumem o respeito com essa gritaria, com essa pressão e tudo mais.

Eu sou da opinião que tem de existir pressão, até porque sem ela as pessoas não conseguem chegar mais além. Mas acho que hoje em dia já é um exagero o que se passa dentro de algumas cozinhas. Existem maneiras e formas de se lidar com uma equipa sem ter que se chegar à humilhação.

No “Pesadelo na Cozinha”, por exemplo, esses cenários que descreve de humilhação acontecem muito. Acha que esses episódios passam uma imagem negativa dos chefs para o grande público?
Bem, acho que, por vezes, não existe necessidade de humilhar as pessoas. Mas também é verdade que há pessoas que precisam de acordar para a realidade. Em Portugal, somos muito adversos à mudança. E para um chef chegar a uma casa que já funciona há 10 anos, há 15 anos, e dizer que está tudo errado, se calhar tem mesmo de pressionar as pessoas para elas chegarem a um ponto de entenderem que algo não está bem.

Muitas empresas familiares, muitas vezes retratadas no programa, acabam por falir porque as pessoas não querem mudar, não sabem ou não querem modernizar-se, adaptar-se. E acho que isso é exatamente o que se passa com muita da indústria da restauração em Portugal. Precisamos de evoluir, de mudar, principalmente as mentalidades.

Ljubomir Stanisic. “Que se foda a televisão”
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Por exemplo, um jovem que sai da universidade com um curso de cozinha, não tem estofo para ir para uma cozinha e ser humilhado da mesma maneira que nós fomos. Os chefs da “velha guarda”, com 60 anos por exemplo, passaram por muito, foram maltratados e acham que essa é que é a maneira de se fazer as coisas, e fazem igual. Porque é que não podemos mudar e progredir? Há muitos bons chefs em Portugal a quem não lhes é dada a oportunidade de criar e de crescer, porque esses chefs mais velhos não deixam as pessoas aprender. Acho que tem de existir mais flexibilidade nas cozinhas, e menos agressão.

Um Algarve que é um Mimo

Como é que chegou ao Mimo Algarve, o seu projeto atual?
Já tinha apresentado a minha demissão no Villa Joya — não saí de lá para vir para aqui, já estava mesmo de saída quando comecei a fazer entrevistas para este projeto, em abril deste ano. A minha ideia até era sair novamente de Portugal para ir fazer consultoria na restauração mas, assim que percebi o que era o Mimo, apaixonei-me pelo projeto. É a minha cara, adoro estar rodeada de pessoas, adoro criar, é também uma oportunidade para eu progredir, evoluir e colocar os meus sabores na mesa.

Pine Cliffs Resort
Praia da Falésia, Albufeira
www.algarve.mimofood.com 

O que é que a seduz tanto neste projeto?
Dar experiências às pessoas, que acaba por ser a essência da Mimo. Adoro ter aqui as pessoas, explicar-lhes os passos todos, dar-lhes dicas, etc. Para mim, tem sido um gozo enorme pôr estrangeiros a comer a nossa comida. As receitas são praticamente todas minhas, tirando uma ou outra que tenho devido às aulas de cozinha espanhola [país onde nasceu o conceito]. Temos algumas para cumprir o currículo destas aulas, mas tudo o resto é meu e bem português. E acabo por dar também a oportunidade aos chefs que trabalham comigo de criar e evoluir.

Quais são os seus projetos a longo prazo?
Neste momento, vou ficar em Portugal. Mesmo dentro da Mimo, tenho um novo projeto: vou ajudar na abertura da Mimo Londres, no início de 2019, e depois quero voltar aqui para o Pine Cliffs e continuar a progredir, a dar a conhecer a cozinha portuguesa. Mas claro que um dia mais tarde, gostava de ter o meu próprio restaurante.

E gostava de ser a primeira mulher portuguesa a conseguir uma estrela Michelin?
Nada é impossível, mas não faz parte dos meus planos atuais. Acho que há muita gente a trabalhar para isso, e também acho que as estrelas, às vezes, são uma avaliação um pouco curiosa. Há restaurantes com estrelas que eu não entendo como é que tal é possível.

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