Conseguimos ouvir o relinchar, porque é a montar um cavalo que Francisco Palha, 31 anos, dá a entrevista à MAGG, por telefone. É toureiro, mas não vive só disso porque, explica, é impraticável para quase todos os que exercem esta atividade, salvo raras exceções. Está nos 700 hectares da herdade do pai, onde se dedica, sobretudo, aos cavalos. A época das corridas, altura em que pisa entre uma a duas vezes por semana a arena, começa a 1 de fevereiro e termina a 1 de novembro, o que significa que a temporada de 2018 está fechada, mas que a de 2019 já não está assim tão longe.

Considera uma "afronta" e "anti-constitucional" a posição da ministra da Cultura, Graça Lopes, que, para o Orçamento de Estado de 2019 (votado a 29 de novembro), não quer ver o IVA reduzido para 6% neste tipo de espetáculo, contrariamente ao que defende para os outros. Por isso, o toureiro apela à intervenção do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, de modo a que se "corrija a barbaridade."

Explica que neste tipo de espetáculo, em que homem e animal se confrontam, há "ética e estética", mas aceita aqueles com opiniões diferentes. Já matou touros (ou toiros, como diz sempre) e explica que, se não fosse por aquilo que considera ser uma manifestação cultural, a raça com que se defronta já nem sequer existiria.

Pode recordar a primeira experiência na arena?
Tinha 11 anos e foi numa garraiada em Vila Franca de Xira. Aconteceu porque via um primo, mais novo, a tourear em casa e ganhei uma espécie de picardia, que me fazia querer ser como ele. Claro que correu pessimamente. Nem conseguia reagir. Não conseguia fazer nada daquilo que imaginava. Não conseguia conduzir os cavalos, não conseguia acertar com as bandarilhas. O normal para um principiante. Pensei que ia ser um grande triunfo, mas ainda bem que não foi, para querer ir mais longe.

Do que é que mais gosta em ser toureiro?
O que eu mais gosto é de fazer as pessoas felizes, os aficionados felizes. Eu fui nascido e criado no campo, portanto a vida não faz sentido nenhum sem toiros.

Quanto é que ganha em média um toureiro?
Umas vezes ganha para as despesas, outras nem tanto. Mas, na verdade, salvo uma ou outra exceção, não se ganha o suficiente para se chegar a ser rico.

Como é o dia a dia de um toureiro?
Eu comercializo cavalos e monto a cavalo todos os dias, na herdade Paúl da Vala, em Samora Correia. O meu dia a dia é levantar-me às 8 horas e estar nisto até à noite. Tenho de preparar os cavalos para as corridas, para comercializar ou para a equitação de trabalho. À parte disso, tenho as corridas. Penso que hoje em dia, praticamente todos os toureiros têm de ter uma vida paralela. Tourear é muito dispendioso. Não se pode viver só disso.

Na tauromaquia, apesar de ser um confronto, há ética e há estética, duas variáveis incontornáveis, seja no conceito de vida, seja no conceito de arte"

Como é que a família reage ao facto de ser toureiro? Há algum elemento contra? E os amigos? Entendem-no?
Na nossa família há quatro ou cinco toureiros, os ganaderos e ainda temos os que criam cavalos. Ninguém está contra e todos percebem perfeitamente. Os nossos amigos também. Nunca tive um amigo que não entendesse, graças a Deus. E se não perceberem, temos de respeitar toda a gente. Tentamos explicar o nosso ponto de vista. Mas se, mesmo assim, não compreenderem, resta-nos aceitar isso.

Não há ninguém que não tenha medo

Já teve discussões pelo facto de ser toureiro?
Eu nunca tive, porque ando sempre por casa e saio pouco. Esta questão tem muito a ver com o sítio em que nos movimentamos mais e eu ando sempre pelo Ribatejo, que é uma zona muito taurina, em que isso faz parta da cultura. É toda a gente muito a favor. Mas os temas mais sensíveis têm a ver com o sofrimento do toiro. Quando fui tourear a França já tive um grupo de anti-taurinos numa manifestação enorme, mas não houve diálogos. Estava cada um de seu lado.

Já foi ameaçado de morte ou já esteve numa situação de risco de violência física por ser toureiro?
Felizmente que, nem por ser toureiro, nem por nenhuma outra razão. Sou apenas uma pessoa pacífica e respeitadora dos valores humanísticos que me foram transmitidos pela minha família. Mas já tive amigos que receberam ameaças.

Treinamos todos os dias para superar o medo do touro, de falhar, de defraudar o público. Temos constantemente o medo sobre nós."

Qual é a sensação antes de entrar na arena?
Quando entramos pela primeira vez na arena, ou seja, nas cortesias, sente-se invariavelmente uma certa ansiedade, que se supera a partir do momento em que se transpõe a porta de quadrilhas. Quando entramos para lidar o toiro, mistura-se a ansiedade com a determinação de vencer e o receio de poder ser vencido.

E já lá dentro?
Não há ninguém que não tenha medo. Temos todos, dentro ou fora da praça. Treinamos todos os dias para superar o medo do touro, de falhar, de defraudar o público. Temos constantemente o medo sobre nós. Quando toureamos não se explica. Só fazendo. O que nos vai na cabeça é difícil explicar. É uma adrenalina única. É a melhor coisa de sempre. Tudo o que possa dizer é pouco. É um misto de sensações tão grande que, quando acaba por sair bem, é a melhor coisa que nos pode acontecer na vida.

Cumpre algum ritual antes de entrar?
Como católico que sou, rezo quando me visto para tourear, e rezo antes de entrar na arena. Entrego-me nas mãos de Deus, confiando-lhe a minha vida. Como Nossa Senhora respondeu ao Anjo Gabriel: “Faça-se em mim segundo a Vossa vontade”. E que a vontade de Deus seja o meu triunfo!

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Dentro da arena já teve a vida em risco? Pode contar?
Entrar numa arena e enfrentar um toiro constitui, desde logo, uma situação de risco de vida. Mas posso relatar-lhe uma situação que me ocorreu: a primeira vez que toureei em Espanha, logo no primeiro toiro, caí do cavalo, parti uma mão e tive de tourear o segundo toiro de mão partida. Passei à final e acabei por ganhar. Nestas situações fazemos das tripas coração, esquecemos a dor, transformamo-la. Este mês de agosto, por exemplo, parti uma perna e fiz 12 corridas assim. Tirava o gesso antes de entrar e depois, no final, tinha de colocá-lo novamente.

Se não fosse o espetáculo tauromáquico, a raça brava de lide já teria desaparecido e seria uma recordação como, não digo os dinossauros, mas pelo menos como os mamutes."

Como é que se prepara o touro antes deste entrar na arena? Fazem com que, de alguma forma, ele perca a força?
Nada disso. O toiro chega à praça, passa por uma avaliação do seu estado físico pelo veterinário nomeado pela Inspecção Geral das Actividades Culturais (IGAC), nos termos definidos pelo Regulamento do Espectáculo Tauromáquico (Decreto-Lei 89/2014). Caso não se verifiquem os pressupostos legais, o toiro é de imediato rejeitado.

Chega, ou de véspera, ou antes do meio-dia da data da corrida. Descansa até à hora do sorteio (17 horas, se a corrida for noturna). Após o sorteio, é embolado sob a supervisão do veterinário e do Director de Corrida, obedecendo ao normativo que a própria Inspecção-Geral estabelece, e regressa ao curro aguardando o momento de ser lidado.

Isso de “arranjos” de bastidores está totalmente fora de questão. Mais: as praças de toiros foram obrigadas a criar condições para aumentar o bem-estar animal por imposição da IGAC, sob proposta da Direcção-Geral de Alimentação e Veterinária, em linha aliás, com as directivas europeias sobre o referido bem-estar animal.

Na tauromaquia há ética e estética

Já matou touros?
Sim. Fiz várias temporadas em Espanha e em França. Em Espanha é obrigatória a morte do toiro na arena e também em França onde, coexistem corridas ao uso de Espanha, com outras ao uso português, logo sem morte do toiro na arena.

O que se sente quando se mata o touro? Já sentiu pena?
Que se venceu uma luta. Nunca senti pena. Eu corro o risco de vida. Nós batalhamos um com o outro. Se o touro for bom, sobrevive. Se for mau, segue o ciclo normal da vida dele e morre.

O touro de uma tourada iria ser abatido, independentemente de fazer parte do espetáculo? 
Se não fosse o espetáculo tauromáquico, a raça brava de lide já teria desaparecido e seria uma recordação como, não digo os dinossauros, mas pelo menos como os mamutes. O toiro de lide, que só vai à praça dos 3 para os 4 anos de idade (é novilho aos 3 anos e toiro adulto aos 4 e seguintes) existe porque existe o espetáculo tauromáquico, que lhe garante a sobrevivência enquanto espécie e o aproveitamento de um ecossistema onde outra raça ou cultura do solo (por serem solos pobres) não sobreviveria. O espetáculo está em sublimar e submeter, pela arte do cavaleiro, do matador ou do forcado, a força bruta do animal.

Acredita na ideia de que os touros não sentem quando se espeta a bandarilha?
Acredito que sentem a picada da bandarilha como nós sentimos a picada de um alfinete. A questão é interpretar a reação do toiro. Se é bravo persegue e tenta “ajustar contas” com quem lhe cravou a bandarilha. Se é manso salta, defende-se e acobarda-se.

Muitos alegam que é uma manifestação pública de violência. Como é que contra-argumenta?
A palavra tauromaquia resulta da junção da palavra tauro (touro) com makia (do grego, luta). É uma luta, um combate entre homem e toiro. Combate do qual um dos dois sairá vencedor: homem ou o toiro e nem sempre é o homem o vencedor. Mas a singularidade desse combate está também na ética que lhe está subjacente, nas regras em que o toureio se baseia e das quais a principal é o homem dar sempre vantagem ao toiro, no ataque e na defesa. E se o toiro se destacar pela sua nobreza e bravura tem como prémio o indulto, o perdão da vida e o regresso ao campo para poder passar o resto da sua vida, como semental (reprodutor).

Esta é a essência do combate homem-toiro, inicialmente uma forma de preparação da nobreza para a guerra, mas que, com o decorrer dos séculos, vem privilegiando a vertente artística em detrimento da vertente meramente bélica. A história da humanidade é um somatório de guerras, mais ou menos sangrentas, com centenas de milhões de mortes. O nosso dia-a-dia está povoado de manifestações públicas de violência, seja violência doméstica, seja coação de toda a espécie, roubos e até a violência que é transmitida às crianças nos “inocentes” desenhos animados a que elas têm diariamente acesso em casa, através da TV.

Na tauromaquia, apesar de ser um confronto, há ética e há estética, duas variáveis incontornáveis, seja no conceito de vida, seja no conceito de arte.

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O que acontece ao touro depois de toureado em Portugal? 
Os que são bons voltam para o campo para padrear, consoante a opinião do criador. Os outros morrem.

Há algum argumento anti-tourada que o aborreça especialmente?
Prefiro responder-lhe de uma forma global, ou seja, aborrecem-me todos os argumentos em que os anti-taurinos nos atacam com base em premissas falsas e com documentação manipulada. E isso é o que normalmente acontece.

Mas consegue entender o ponto de vista de quem é contra?
Não só consigo entender como respeito. Respeito a diversidade e a pluralidade de opiniões e também agradeceria aos anti-taurinos que respeitassem o sentir e as opções dos taurinos.

Se as touradas forem abolidas com o argumento de que os toureiros matam os toiros, a pesca e outras atividades terão também de ser abolidas porque o pescador mata o peixe, o caçador mata a caça."

As touradas são uma forma de expressão cultural?
Acho que são, claro que sim. Como sabe, as corridas de toiros, ou touradas, têm vindo a ser um tema muito polémico e debatido. Mas uma coisa é certa: faz parte da nossa cultura. Levamos anos e anos sem fim com corridas porque é tradição, porque é cultural. Isto é uma coisa que tem séculos. Não viemos inventar nada. Tenho dois tios direitos que são toureiros. O meu pai foi forcado. O meu primo Luís Palha leva o ganadero da Quinta da Foz. Estamos todos ligados ao campo, ao toiro e aos cavalos.

O pescador também mata o peixe

A ministra da Cultura, Graça Lopes, apoiada por António Costa, não quer ver o IVA descer para 6% nas touradas, contrariamente ao que defende para outro tipo de espetáculos. 
É uma afronta aos aficionados, uma discriminação negativa sem sentido contra a tauromaquia e um ato inconstitucional para o qual deveremos chamar a atenção do senhor Presidente da República, como insigne constitucionalista que é, para estar atento e usar a sua magistratura de influência, ou os poderes que a constituição lhe confere, para corrigir esta barbaridade.

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Considera que é digno morrer dentro de uma arena? Porquê?
Naturalmente que é digno para um toureiro morrer numa arena, como é digno para um doente terminal morrer rodeado de carinho da família e dos amigos e com os necessários cuidados médicos.

Acha compatível gostar de animais e ser toureiro?
Claro que sim.

É costume guardarem-se partes do touro como troféu?
Claro. É muito usual mandarmos embalsamar cabeças de toiros que tenham tido um significado especial para a nossa carreira, cabeças de cavalos que se tenham destacado, orelhas de toiros cortadas em praças de especial importância, para lhe dar os exemplos mais usuais.

Se as touradas fossem abolidas, a que é que se iria dedicar?
À pesca não me dedicarei, certamente. Se as touradas forem abolidas com o argumento de que os toureiros matam os toiros, a pesca e outras atividades terão também de ser abolidas porque o pescador mata o peixe, o caçador mata na caça, etc. No limite, quando fossemos todos vegetarianos, este problema colocar-se-ia também aos vegetais (igualmente seres vivo), que morrem às mãos dos humanos e, por aí em diante, até ao absurdo. Ora penso que é mais razoável evitarmos o absurdo das coisas e o fundamentalismo das atitudes e comportamentos. As touradas não têm por que ser abolidas.

Mas o pescador mata para comer, por exemplo.
Há muita parte da caça e da pesca que nem se come.