Foi em abril que fiquei conhecida como a jornalista das tartarugas. A propósito de um artigo sobre as dificuldades de arrendar casa em Lisboa, comecei o texto a falar de um documentário que tinha visto sobre tartarugas-marinhas. As primeiras horas de vida destes animais são problemáticas: pequenas e indefesas, têm de fugir de todo o tipo de predadores — gaivotas, caranguejos, até tubarões. Por culpa de tudo isto, apenas um em cada mil filhotes recém-nascidos consegue chegar à idade adulta.

A visita noturna para assistir à desova das tartarugas da espécie Caretta caretta custa 60€ por pessoa com a Morabitur. As crianças dos dois aos 12 anos pagam 30€.

A vida das tartarugas não é nada fácil. Mais ou menos como arrendar casa em Lisboa neste momento: por mais determinados que estejamos em sobreviver, isto é, arranjar uma casa por um preço justo, os predadores são mais do que muitos e só um em mil consegue atingir o objetivo.

Há vários meses que não pensava nas pobres tartarugas. Pelo menos até surgir a oportunidade de assistir à desova das tartarugas, a propósito de uma viagem à ilha da Boa Vista, em Cabo Verde, organizada pela Solférias em parceria com os RIU Hotels & Resorts. Mandei mensagem a metade da minha lista telefónica. Nem queria acreditar: ia ver o documentário ao vivo e a cores.

Eram 19h30 quando nos encontrámos à porta do hotel com Juanito Brito, o guia que acompanhou a nossa excursão. "Preparados para ver as tartarugas?", perguntou, depois de apresentar a cada um dos membros do grupo. Uns ficaram calados, outros anuíram, eu soltei um "sim" em êxtase. Ainda não conseguia acreditar que iria poder testemunhar ao vivo aquilo que tinha visto no documentário. E ai do primeiro pássaro que cruzasse o meu caminho.

Juanito Brito tem 33 anos e é guia turístico, taxista e bombeiro

A Boa Vista é um local privilegiado para assistir à desova das tartarugas, que acontece entre junho e outubro. A ilha tem 80% dos ninhos de tartarugas da espécie Caretta caretta (tartaruga-marinha-comum), com aproximadamente quatro mil fêmeas a desovar nas praias todos os anos. É a terceira maior reserva do mundo por número de tartarugas desta espécie, a seguir a Omã e à Florida.

Assim que entramos na Reserva Natural Tartaruga, situada na zona sul da ilha, Juanito Brito para o carro. Estamos a entrar num território que já não nos pertence, pelo menos enquanto estiver ocupado pelas tartarugas. As visitas para assistir a este fenómeno natural acontecem todos os dias, mas o protocolo tem de ser seguido com rigor: nada pode perturbar a desova das tartarugas. Se algum destes animais detetar a nossa presença antes de começar a libertar os ovos, vai voltar para o mar. Para ela, vai ser terrível. Para nós, significa que todas as excursões terminam imediatamente.

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O primeiro passo é tapar as luzes do carro com um plástico vermelho — esta é a luz menos intensiva para as tartarugas, e será a que nos acompanhará quando chegarmos à praia de Ervatão, uma das praias onde saem mais animais. Tirar fotografias é permitido, mas nunca com flash — é o suficiente para o animal de assustar.

Depois de desovarem, as tartarugas tapam o buraco com areia

Juanito Brito repete esta informação quase de cinco em cinco minutos. Quando chegamos à praia onde vamos assistir à desova, confesso que já verifiquei 1.345 vezes se tenho o flash desligado.

— As tartarugas já estão a sair.

A informação foi dada pelo walkie-talkie. Olho para o relógio: são 20h09. Já admiti que vivi esta experiência com (demasiada) intensidade, no entanto senti que naquele momento toda a gente se mexeu, ansiosa, dentro da pick-up. Estávamos a poucos passos das tartarugas. Estava quase, quase a começar.

A emoção de assistir à desova das tartarugas

Está uma noite escura como breu. Estive cinco minutos a tentar arranjar outra expressão que explicasse exatamente o quão escuro estava, mas não me lembro de mais nenhuma: estava escuro. Escuro como breu. Apesar de ser noite de lua cheia, as nuvens tapavam qualquer luminosidade que pudesse chegar à praia. Dez minutos depois de chegarmos, já só tinha vontade de chorar.

Vive-se uma verdadeira euforia naquele momento — comedida, claro, ninguém quer assustar as tartarugas. Há braços a apontar em todas as direções: "Olha, está ali uma! Consegues ver? Acabou de se mexer!". Nesse momento, desisto e sento-me no chão. Não, não vejo absolutamente nada. Sofro de estigmatismo e mesmo com óculos vejo mal ao longe. Considerando que está escuro como breu (não me lembro mesmo de outra forma descrever esta noite), não vejo absolutamente nada. Uma tartaruga? Também pode ser uma pedra. Neste momento é tudo a mesma coisa.

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— Venham, vamos poder ver uma mais de perto.

As palavras são de Juanito Brito. Respiro fundo: ainda há esperança. Talvez não regresse a Lisboa a admitir que a jornalista das tartarugas não viu nenhuma porque tem problemas nos olhos. Avançamos com cuidado pela praia, até chegarmos a uma lanterna vermelha que está enterrada na areia. A tartaruga está a acabar de desovar — percebemos isso porque o buraco que fez na areia já está cheio de ovos. Um minuto depois, a tartaruga termina e começa a tapar os ovos.

Foi absolutamente extraordinário assistir àquele momento. Cerca de dez minutos depois, deixamos esta tartaruga para trás e vamos sentar-nos ao pé de outra. Aqui sim conseguimos assistir ao fenómeno desde o início — assim que escolhe um local na praia, o animal começa a cavar um buraco.

Este é o momento em que temos de ter mais cuidado para ela não detetar a nossa presença: elas não nos ouvem, mas se virem uma luz vão a correr para o mar. Volto a verificar que o telemóvel tem o flash desligado. Sim, Marta. Nada mudou desde os últimos dez minutos.

Uma tartaruga a desovar

Quando sente que cavou um buraco suficientemente fundo (geralmente tem entre 40 a 50 centímetros), a tartaruga começa a libertar os ovos. Neste momento já podemos tirar fotografias com flash à vontade — ela entra numa espécie de transe, e não vê nada à sua volta. Cada fêmea liberta entre 60 a 80 ovos, mas às vezes há recordes incríveis — como uma tartaruga na ilha da Boa Vista que deixou 166 ovos de uma vez. O facto de ter um metro de comprimento pode ter ajudado.

A desova dura aproximadamente 40 minutos. Quando termina, a tartaruga volta para o mar. "Nunca vai ver os filhos?", pergunta alguém. A resposta é não. A partir de agora, eles estão por eles. Mas há um facto curioso: as tartarugas acabam sempre por desovar no local onde nasceram. Pode não ser exatamente a mesma praia, mas será certamente a mesma região.

Outras curiosidades: se ovos ficarem a uma temperatura superior a 30 graus, serão fêmeas. Se for inferior, terão o sexo masculino. Cada tartaruga consegue colocar num buraco filhos de quatro ou cinco pais diferentes, e no mesmo período conseguem desovar entre cinco a sete vezes. Nas primeiras 24 horas, o ovo é mole. Depois é que começa a endurecer.

E, de repente, o inesperado aconteceu

— Está aqui um ninho! Venham!

As tartarugas bebés demoram aproximadamente 45 dias a nascer. Quando estiverem totalmente desenvolvidas, vão começar a sair da casca, escavar pela areia e caminhar em direção ao mar. Qual é a probabilidade de estar numa praia a assistir à desova das tartarugas e de repente descobrir um ninho? Bem, não é lá muito grande. Mas foi exatamente isso que acontece nessa noite.

De repente, encontramos um ninho de tartarugas

Enquanto as víamos desbravar a areia, ora muito organizadas, ora completamente atarantadas, alguém deixou escapar a seguinte frase: "Sinto-me tão grata por estar a assistir a isto". Confesso que senti o mesmo: poder ver um fenómeno natural como este foi inacreditável. Ao mesmo tempo, porém, é quase avassalador olhar para cada um daqueles animais e saber que só uma ou duas é que pode sobreviver. Ou nenhuma.

A vida num acampamento que se dedica a estudar (e a salvar) tartarugas

No dia seguinte à excursão, voltámos à praia de Ervatão. Agora à luz do dia, apercebemo-nos que em plena reserva natural existem várias Organizações Não Governamentais (ONGs) que se dedicam a estudar e a assegurar a sobrevivência da espécie.

Caminhamos em direção a um acampamento improvisado que foi montado mesmo em frente à praia. Num pedaço de madeira redondo com a pintura de uma tartaruga, lê-se: Natura 2000. Esta rede encontra-se presente nos 28 países da União Europeia, e dedica-se à conservação dos habitats e das espécies selvagens raras, ameaçadas ou vulneráveis.

Estão vários jovens sentados dentro do acampamento. Parecem estar a jogar, penso, para logo a seguir proceder às devidas apresentações. Quando pergunto quem será a pessoa mais indicada para falar comigo sobre as tartarugas, todos apontam para o jovem que veste uma T-shirt com uma caveira.

João do Rosário tem 23 anos e é monitor no acampamento da Natura 2000 na ilha da Boa Vista

João do Rosário nasceu na ilha de Santo Antão, estuda em São Vicente e foi para a Boa Vista no início de junho para trabalhar com as tartarugas. Com apenas 23 anos, pode ter aparência de miúdo mas sabe exatamente do que fala — afinal, ele não é apenas voluntário, mas sim um dos monitores.

Os acampamentos são montados pelas ONGs. Neste da Natura 2000, estão neste momento 24 pessoas a trabalhar. "São sobretudo espanhóis e cabo-verdianos", explica à MAGG João do Rosário. Cerca de dez são monitores, os restantes voluntários. A diferença entre eles é óbvia: uns recebem, outros nem por isso. Neste acampamento em específico, os monitores ganham 250€ por mês.

Não é uma vida fácil. Enquanto estão no acampamento, monitores e voluntários dividem-se em dois grupos: uns fazem o trabalho de campo de manhã e outros à noite. "Por volta das 4h30, cinco da manhã, vamos fazer a prospeção. Mas antes disso, às três, vamos trabalhar a última tartaruga e apagar os rastos". Trabalhar a tartaruga, explica-nos João do Rosário, passa por ver quantas tartarugas estão a desovar e como está a correr o processo.

"Mas esse trabalho também fazemos à noite. Começamos por volta das 20h30, 21 horas, depois do jantar".

Enquanto não estão a trabalhar, voluntários e monitores descansam. "Jogamos, vamos à praia". Fazem o que podem para se entreter, até porque têm mesmo de ficar por ali — os únicos que podem sair do acampamento são os monitores, e só têm folga um fim de semana por mês.

A par do trabalho de prospeção, o grupo salva ainda os ovos que estão em risco — e que seriam incapazes de sobreviver sozinhos. Ficam em incubação até nascerem. Mas há outros perigos a colocarem em risco a espécie, nomeadamente as redes de pesca e o plástico. "Há uns dias encontrámos uma tartaruga toda enrolada numa rede em materiais de pesca."

A imagem da tartaruga envolta em redes de pesca que a Natura 2000 conseguiu salvar

João do Rosário explica-nos que os pescadores atiram as redes e outros utensílios de que já não precisam para o mar. Para as tartarugas isto pode ser letal, uma vez que elas não têm noção do perigo que estes materiais representam. A Natura 2000 conseguiu intervir no caso desta tartaruga adulta e salvá-la. Infelizmente, nem sempre é assim.

"Aqui também temos situações de caçadores, pessoas que apanham tartarugas para comer." A presença destes acampamentos acaba por dissuadir este tipo de comportamentos. "Estamos aqui para conservá-las e protegê-las".