Piedade Fernandes, 54 anos, é professora de Educação Visual, empresária e fadista. Ficou conhecida quando, em 1994, conseguiu o quarto lugar no Festival da Canção e conquistou a atenção e o interesse do grande público e dos amantes de fado. Porém, depressa voltou a cair no esquecimento de muita gente até ao final de 2017 — e tudo devido ao sucesso de "La Casa de Papel", a série espanhola que foi comprada pela Netflix.

É que no quinto episódio há uma canção portuguesa chamada "Fado Boémio e Vadio" interpretada por Piedade muitos anos antes, e que foi colocada numa biblioteca online para que pudesse a vir a ser utilizada livremente noutras produções. Não demorou muito para que começassem a surgir as primeiras notícias que davam conta de como a fadista tinha sido roubada por não ter recebido um único cêntimo da utilização da sua canção na série. Mas tudo isto não passou de um mal-entendido que, revelou à MAGG, lhe trouxe uma exposição mediática muito elevada, com tudo o que isso tem de bom e de mau.

Este não foi o tema único da conversa que teve com a MAGG. Houve ainda tempo para falar dos sonhos por concretizar, do estado dos media em Portugal e de como os seus alunos reagiram quando descobriram que "a 'stôra deles fazia parte da 'La Casa de Papel'". De repente, diz Piedade, o fado passou a ser cool e ainda hoje vive esse momento com muita alegria.

Como começou toda esta polémica em redor da canção “Fado Boémio e Vadio”?
Tudo começou há cerca de 26 anos quando conheci, por acaso, um produtor belga chamado Timothy Hagelstein. Já tinha feito um primeiro trabalho para ele chamado “A Última Lágrima da Vida” com o único objetivo de fazer parte de uma biblioteca online. Momentos mais tarde chamou-me para gravarmos uma nova canção chamada "Fado Boémio Vadio" exatamente com o mesmo propósito.

Mas escolheu não registar a canção?
É aqui que está a confusão de muita gente: eu não podia registar uma canção que não era minha. A canção era do Nuno Nazareth Fernandes e do Henrique Amoroso. Eu apenas a interpretei, não a escrevei. Dei-lhe o meu cunho pessoal e assinei um documento em como prescindia dos direitos enquanto intérprete e autorizei que fosse colocada numa plataforma online para que pudesse vir a ser utilizada em telenovelas e séries.

É que toda a gente vinha ter comigo com comentários do género 'bem, tu agora vais deixar de dar aulas' ou 'agora deves estar cheia de trabalho' mas a verdade é que nada disso aconteceu."

A partir daquele momento tudo ficou resolvido. Mas as pessoas meteram na cabeça que eu tinha de receber alguma coisa quando, na verdade, não é bem assim. É tal e qual como vender um quadro a alguém que, mais tarde, pode querer vendê-lo a outra pessoa e eu perco-lhe o rasto — até que um dia entro num restaurante e dou de caras com o meu quadro. Tudo perfeitamente legal.

E foi isso que expliquei quando fui à televisão ou quando fui entrevistada por alguns meios de comunicação. Estou consciente de que não tinha nada a receber.

Mas as várias notícias diziam o contrário.
Pois, a informação que saiu cá para fora dizia que eu tinha sido roubada. Mas não fui. Toda a gente me perguntou se eu já estava rica, ao qual eu respondia que não e que nunca iria estar. Mas ninguém tem culpa disso e o meu intuito nunca foi enriquecer. Aquilo que eu espero que resulte de toda esta exposição é mais oportunidades de trabalho.

Mas na altura da polémica disse que estava em conversações com a Gestão dos Direitos dos Artistas. Porquê?
Cá em Portugal temos a Sociedade Portuguesa de Autores e a Gestão dos Direitos dos Artistas (GDA). Ora, como eu não sou autora, o que ficou registado foi a minha interpretação de uma canção e é nesse sentido que a GDA nos protege. As conversações de que fala tiveram como único objetivo saber como é que eu deveria esclarecer as pessoas em relação a isto.

É que toda a gente vinha ter comigo com comentários do género “bem, tu agora vais deixar de dar aulas” ou “agora deves estar cheia de trabalho” mas a verdade é que nada disso aconteceu. Eu sabia perfeitamente que visto que os trabalhos estavam todos nessa plataforma online, à partida eu não teria nada a receber mas quis ir à GDA para confirmar isso mesmo. Não é que eu tenha alguma exigência a fazer, claro.

Acabei por me fazer amiga de Alejandro Bazzano [um dos produtores de “La Casa de Papel”] e agradeci-lhe o facto de ter escolhido uma canção portuguesa e, acima de tudo, as portas que aquela decisão podiam ter aberto para mim.

E que informações é que a GDA lhe deu?
Que tudo o que são fonogramas ou seja, músicas de fundo onde seja a minha voz que está a cantar, eu tenho sempre alguma coisa a receber. Mas não é muito. Normalmente deixo o valor engordar para ir lá buscar uma quantia volumosa. Sei que recentemente fui lá levantar cerca de 300€.

Já depois do sucesso da série “La Casa de Papel?
Não. Aliás, eu acho mesmo que estes valores nunca virão a englobar a série porque “La Casa de Papel” foi produzida e realizada no estrangeiro e a GDA não pode gerir os direitos dos intérpretes no estrangeiro. Só gere em Portugal.

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Mas a série é distribuída cá através da própria Netflix…
Não me souberam explicar muito bem isto e ainda estou à espera de uma resposta conclusiva, porque o caso é todo ele muito estranho. Mas creio que a GDA só gere os direitos dos artistas quando as suas interpretações são utilizadas em canais por cabo e nacionais. A confusão foi tanto que chegaram até a perguntar-me se eu queria pôr o Departamento Jurídico a trabalhar e eu recusei.

Quando me perguntam se já estou rica, tenho de voltar ao início da história: fiz um trabalho, fui pago por ele e assinei um papel em como dava autorização para que a canção fosse utilizada livremente."

Acabei por me fazer amiga de Alejandro Bazzano [um dos produtores de “La Casa de Papel”] e agradeci-lhe o facto de ter escolhido uma canção portuguesa e, acima de tudo, as portas que aquela decisão podiam ter aberto para mim. Não vou, de maneira alguma, abrir um contencioso jurídico com uma pessoa que gostou de me ouvir cantar. A única coisa que eu quero é trabalho.

E tem aparecido?
Sim, surgiu a oportunidade de fazer parte de um projeto muito engraçado. Eu moro em Setúbal e do outro do lado do rio, no Casino de Troia, propuseram-me organizar as sextas-feiras de fado em que eu levava sempre um convidado para cantar. Passei todo o mês de agosto envolvida neste projeto e creio que marquei as pessoas de uma forma muito especial, porque muitas delas, na vinda de barco para Setúbal, ainda me perguntam o que é que vão fazer agora sem as noites de fado, visto que fizemos uma interrupção durante todo o mês de setembro.

Isso para mim é o melhor cachê que me podem dar. Não quero acusar ninguém porque nada do que veio nas notícias é verdade. O trabalho foi pago e foi posto livremente num sítio online e eu estava perfeitamente consciente disso.

Mas de onde é que veio toda esta confusão que se gerou em volta da canção?
As pessoas ou se esqueceram ou não sabem como é que as coisas eram feitas há muitos anos. Quando me perguntam se já estou rica, tenho de voltar ao início da história: fiz um trabalho, fui pago por ele e assinei um papel em como dava autorização para que a canção fosse utilizada livremente. Era assim que as coisas se processavam na altura.

Ele disse-me que estava a ver uma série que estava a bombar em todo o mundo, que se chamava 'La Casa de Papel' e que no quinto episódio havia lá uma canção que ele jurava que tinha sido cantada por mim."

O caso da Piedade foi inédito em Portugal?
Não sei, se calhar foi. Nunca tinha ouvido falar de um caso semelhante e o mais engraçado é que soube por acaso.

Mas foi completamente apanhada de surpresa?
É que não estava mesmo nada à espera. E tudo aconteceu durante uma entrevista que eu estava a fazer para a Câmara de Setúbal, em que um dos técnicos da câmara me perguntou se eu tinha Netflix. Ele disse-me que estava a ver uma série que estava a bombar em todo o mundo, que se chamava “La Casa de Papel” e que no quinto episódio havia lá uma canção que ele jurava que tinha sido cantada por mim. Fui logo ao YouTube e corri os vídeos todos da plataforma até dar com aquele momento em específico e lá estava a minha voz na canção "Fado Boémio e Vadio".

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Foi tudo por um mero acaso e o que me surpreendeu foi como é que uma canção, que tinha ido para a tal biblioteca online, estava agora a correr o mundo inteiro. Não fazia ideia que isto tinha acontecido nem tinha nada que saber, na verdade. Foi só uma agradável surpresa.

O produtor da gravação, o Timothy, mandou-me um email a acusar-me de ser ingrata e disse que eu deveria ir a todos os meios de comunicação desmentir tudo o que tinha dito para repôr a verdade sob pena de um processo judicial

E viu a série?
Claro e estou ansiosa pela próxima temporada. Devorei os episódios todos num instante.

Como foram as reações dos seus alunos?
Na escola sempre todos souberam que eu era fadista e até tinha várias alunas que vinham falar comigo e me pediam conselhos. Os rapazes mais rezingões não ligavam a nada disso até saberem que a professora deles cantava em “La Casa de Papel”. Aí o fado passou a ser cool [risos], só que como eles não sabem cantar fado é-lhes mais fácil cantar a outra canção mais conhecida da série — a “Bella Ciao”.

É um contentamento que eu partilho com eles. “A nossa ‘stora entra na série!”, é o tipo de comentários que eu mais ouço.

O que é que a exposição mediática lhe trouxe de negativo?
Foram todos apanhados de surpresa. Assim que se soube que eu era a fadista que aparecia na série, no dia seguinte tinha vários jornais a querer falar comigo e a marcar entrevistas. Eles queriam saber o porquê de isto tudo ter acontecido e eu ainda não sabia muito bem como como lhes responder acerca da questão dos direitos. Deixei claro que tinha sido paga por tudo o que tinha feito e que tinha prescindido dos direitos daquela produção, mas mesmo assim muita gente quis acreditar que eu tinha de ser paga e foi essa a informação que passaram para a manchete das várias notícias que fizeram sobre mim.

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A insistência foi tal que o produtor da gravação, o Timothy, mandou-me um email a acusar-me de ser ingrata e disse que eu deveria ir a todos os meios de comunicação desmentir tudo o que tinha dito para repôr a verdade sob pena de um processo judicial. Eu nunca disse que tinha sido roubada, mas ele achou que sim e ainda hoje não nos falamos por causa disso.

Foi uma relação que ficou manchada como consequência de tudo isto?
Ele nunca mais me respondeu aos emails apesar de eu ter feito várias tentativas para falar com ele. Disse-lhe para ler com atenção todas as entrevistas que iam saindo e pedi-lhe para não ler só os títulos de manchete porque o que estava lá escrito não correspondia à verdade. Expliquei que os títulos eram apenas um chamariz mas que o conteúdo era bem diferente e que nunca disse a ninguém que me sentia injustiçada ou que merecia receber alguma coisa.

Sempre disse a verdade?
Sempre, e nunca parei de agradecer toda esta exposição e todas as oportunidades que me deram. Repare, também não quero estar aqui a acusar os meios de comunicação porque todos nós precisamos deles, mas a verdade é que os media funcionam um bocadinho assim. Lançam uma frase que capte e que chame à atenção dos leitores mesmo que o conteúdo dentro da notícia seja muito diferente.

Fui a todos os canais de televisão mais importantes, menos a um e eu sei bem porquê. É que apesar de esta história ter sido muito mediática, não faz chorar ninguém. E assim que eu comecei a explicar que não estava a perder dinheiro, porque não havia dinheiro nenhum para perder, e que ninguém me tinha roubado, essa estação de televisão não me quis receber. Se a história me pintasse como uma coitadinha, o caso teria sido muito diferente.

Fui a todos os canais de televisão mais importantes, menos a um e eu sei bem porquê. É que apesar de esta história ter sido muito mediática, não faz chorar ninguém."

Então a culpa foi de quem?
Não foi de ninguém, sinceramente. Os jornalistas em Portugal funcionaram bem e se o Timothy não percebeu ou não quis perceber o que estava a acontecer, talvez seja ele o único culpado. Se calhar tem de se informar melhor e tentar perceber como as coisas se processam. Estou muito bem resolvida, felizmente.

Há sonhos por concretizar agora que voltou a estar na ribalta?
Sim, regravar um disco que não chegou a ser editado cá em Portugal. Mas como as canções não são minhas, estou ainda à espera das devidas autorizações. Não quero avançar sozinha porque sinto que devo isso a todas as pessoas que apostarem em mim ao longo dos anos.

Se a GDA lhe telefonasse a dizer que tinha um valor considerável a receber pela utilização da canção na série, qual era a primeira coisa que comprava?
Gravava um disco de originais, que é uma coisa que quero muito fazer mas que ainda vai levar o seu tempo. Fora isso, não fazia nada de muito extravagante. Pagava a minha casa, que é a única coisa que tenho para deixar aos meus quatros filhos porque não sou rica [risos]. E vá, tirava umas férias porque isto de estar sempre a trabalhar dá cabo de qualquer pessoa.