Se perguntarmos a um adulto na casa dos 30 anos com que idade recebeu o seu primeiro telemóvel, é provável que a resposta ronde os 15 anos. É claro que não podemos generalizar, mas a verdade é que há mais de uma década estes aparelhos não eram tão comuns, nem estavam tão disponíveis a todas as faixas da sociedade — e, acima de tudo, os telemóveis (que se resumiam a chamadas e mensagens escritas no início do ano 2000) eram dispositivos de adultos.

Hoje em dia, o cenário alterou-se: este aparelho móvel faz muito mais do que chamadas, é uma porta de entrada para o mundo através de e-mails, YouTube, Facebook, Instagram, Twitter, Messenger e outras redes sociais, e é mais do que comum vermos crianças e adolescentes com os smartphones de última geração no bolso.

Mas será que há uma idade correta para oferecer o primeiro telemóvel ao seu filho? Marta Calado, psicóloga clínica da Clínica da Mente, responde: "Não existe uma fórmula certa. Do meu ponto de vista, a idade ideal é aquela que é estabelecida pelos pais, em vigência das circunstâncias da vida”.

A psicóloga explica que há muitos fatores a considerar: enquanto há pais mais descontraídos, que não veem necessidade em oferecer um telemóvel aos filhos e sabem que os conseguem contactar através da escola, outros podem ser mais preocupados. “Há pais e mães que não ficam descansados com as informações dos auxiliares, por exemplo, e preferem sempre falar diretamente com as crianças, perguntar o que foi o almoço, se está tudo bem”, salienta Marta Calado.

No decorrer das suas consultas, a especialista já viu de tudo: “Atendo miúdos muito pequenos com cerca de seis e sete anos, e que já têm telemóvel, mas também tenho pacientes com 16 anos que ou ainda não têm um aparelho deste género ou não ligam nada ao mesmo, esquecem-se dele em casa e nunca o põem a carregar”.

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Manual de instruções: o uso do telemóvel tem de ter regras

É verdade que os telemóveis têm os seus benefícios: é uma forma fácil de entrar em contacto com alguém, sendo que atualmente as formas de comunicação são as mais variadas. “Há pais que permitem que os mais pequenos tenham estes aparelhos exatamente para que a comunicação seja mais direta e imediata”, afirma Marta Calado, que acredita que com tudo o que um smartphone acarreta (acesso à internet, redes sociais, etc) devem existir regras bem definidas sobre a sua utilização.

A especialista explica que, em primeiro lugar, as crianças devem perceber que apesar de o telemóvel ser uma propriedade sua, provavelmente oferecido pelos pais, o aparelho é partilhado com eles. “Os mais pequenos têm de entender que sim, o dispositivo pertence-lhes, mas trata-se de algo para servir a família. Ou seja, a função primária daquele objeto não é entreter o jovem (sejam jogos ou redes sociais), mas sim ser uma ferramenta de comunicação para os pais conseguirem contactá-lo e vice-versa.”

Após esse importante contexto, existe um conjunto de regras que deve ser aplicado. Marta Calado aconselha que seja rapidamente definido “quando, durante quanto tempo, em que períodos do dia e em que circunstâncias é que as crianças podem usar o telemóvel, de forma a que se estabeleça uma ligação direta entre o prazer de usufruir daquele aparelho e o momento em que é permitido ao jovem fazê-lo”, para além de se estabelecer se existem diretrizes diferentes em períodos de aulas e de férias.

Os perigos a que o seu filho pode estar sujeito

Apesar das vantagens do uso do telemóvel, a verdade é queo uso deste aparelho envolve alguns perigos.

Para além dss redes sociais, onde qualquer pessoa, bem ou mal intencionada, consegue estabelecer contacto com os miúdos de uma forma simples, tem-se assistido nos últimos anos a desafios da internet como o recente Momo ou a Baleia Azul que ofendem, humilham e incentivam os jovens a magoarem-se ou a suicidarem-se resultando em centenas de mortes de adolescentes.

Perante este tipo de cenários, como é que um pai ou uma mãe pode proteger os seus filhos, ao mesmo tempo que lhes colocam um telefone nas mãos?  “Sem dúvida que é possível. Parte de uma cultura educativa em casa, onde os pais, ao invés de criticarem ou terem um discurso antagónico para com os mais pequenos, devem fomentar um ambiente de diálogo aberto numa base diária, assinalando exemplos, para que os miúdos aprendam a fazer escolhas conscientes e ganhem um discernimento entre o certo e o errado”, diz Marta Calado.

Para a psicóloga, os pais devem abordar os filhos sem críticas e sem interrogatórios. “Se os pais fomentarem um diálogo aberto, ao final do dia, por exemplo, e durante a realização de outras tarefas, o jovem vai sentir-se apoiado e acarinhado numa relação de atenção com os progenitores”, salienta Marta Calado. Esta é a forma ideal para os adultos saberem mais sobre as rotinas na escola e da relação com os amigos, percebendo assim se o filho pode estar a ser vítima de armadilhas virtuais e qual a opinião dele sobre isso, continua a especialista.

Se existir uma situação de perigo prestes ou até mesmo a decorrer, a psicóloga avisa que os adultos devem resistir aos impulsos primários de reagir imediatamente, demonstrado descontentamento ou cessando de imediato a utilização do telemóvel por parte do menor.

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Se a postura dos adultos for antagónica, Marta Calado frisa que “aquela criança dificilmente voltará a abordar os pais e a situação pode agravar-se. Se forem alvo de ameaças, como castigos, a tendência natural dos miúdos é fecharem-se  — e vejo muito isso em consulta”, conta a especialista, que recomenda que a melhor estratégia é explicar-lhe o que está a sentir devido ao complexo cenário.

“Os pais devem explicar que estão preocupados, tristes, ansiosos, sem saber o que fazer quanto ao que lhes foi relatado, de forma a que exista uma sinergia e uma sintonia entre pai e filho e os mais pequenos entendam que não estão a levar um sermão, mas sim que os progenitores se encontram em alerta por eles”, salienta Marta Calado. O importante é conseguir agarrar a situação, “perceber o porquê de a criança querer participar nesses tipos de desafios, o que procura, que tipo de prazer quer retirar dali, sendo assim possível, a partir daí, alertar e expôr os riscos a que está sujeita”.

Dar valor ao que se tem

Para além de poder parecer estranho para alguns adultos ver miúdos de oito anos com telemóvel, o cenário agrava-se quando os mais pequenos têm acesso a aparelhos com valores de mercado superiores ao ordenado mínimo nacional. Será normal para uma criança ter algo tão dispendioso, quando talvez ainda não tenha sequer noção do valor material das coisas ou do dinheiro?

Marta Calado sustenta que não é possível impedir uma família com mais poder de compra de oferecer um aparelho de qualidade superior ao seu filho; “tal é arbitrário. No entanto, os pais têm de perceber que se o fizerem, essa é uma decisão que partiu deles e não podem depois culpar a criança caso esta não tenha tido cuidado com o objeto”.

De acordo com a psicóloga clínica, o sentido de valor das coisas é adquirido na primeira infância. “Os pais devem começar a estimular os filhos a estimar e conservar os brinquedos, a sua roupa, etc. Caso contrário, os filhos não vão dar valor ao que têm e terão sempre presente a ideia de que as coisas são facilmente substituíveis — se algo se partir ou estragar, os pais substituem por algo novo.”

Para a especialista, não é difícil perceber a preparação de cada criança. “Logo pela forma como mexem no telemóvel é fácil perceber se há uma preparação e uma educação que vem de casa e que incutiu naquela criança um sentido de cuidado e estima para com os objetos. Uma criança que teve de realizar tarefas para ter o telemóvel, que o pediu como presente em vários aniversários ou Natais, estima a propriedade de outra forma, não leva o aparelho para o intervalo, guarda-o na mochila”, salienta Marta Calado. O sentido de proteção e valorização daquilo que é o património da criança“não nasce dela, vem dos pais e da educação em casa”.