Mimados, tímidos, egoístas. Estes três adjetivos são dos mais utilizados para descrever filhos únicos. Como qualquer outra generalização, é possível afirmar que existem crianças que, mesmo não tendo irmãos, não encaixam neste perfil. Porém, é inegável que alguns filhos únicos podem ser jovens mais antissociais, com dificuldades em partilhar e em fazer novos amigos.

Há miúdos que se aborrecem facilmente com os adultos (dependendo da vontade destes em participar nas brincadeiras das crianças) e é nesse ponto que surge um dilema a muitos pais: devem estender o convite a um dos amigos do filho, para que este tenha companhia durante as férias, ou é mais positivo para o desenvolvimento da criança passar tempo com os pais ou ser forçado a fomentar novos laços com outros jovens?

Pais não podem querer ser os melhores amigos dos filhos. Isso é o papel dos amigos, alerta psicoterapeuta
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Para Vera Lisa Barroso, psicóloga clínica, incluir um amigo das crianças e dos adolescentes nas férias da família tem vários benefícios. Tal como conta à MAGG, “esta é uma possibilidade de estreitar relações com os pares, partilhar momentos, sítios e aventuras em conjunto, algo que contribui verdadeiramente para o aprofundamento das relações”.

Segundo a especialista, este cenário promove a autonomia e a responsabilidade das crianças, bem como os deixa “ensaiar a partilha e gestão de espaço, tarefas e funções, e flexibilizar dinâmicas e rotinas diárias, aprender a ceder, facilitar, contribuíndo para as vivências de todos em tempo de férias”.

Um amigo pode ser uma ferramenta para sair da zona de conforto

É legítimo pensar que uma criança mais introvertida, com dificuldade em criar novos laços de amizade, não faz qualquer esforço para interagir com jovens desconhecidos se estiver acompanhado de um outro elemento da sua idade, com quem pode partilhar momentos de diversão — ou seja, eliminando a necessidade de ter outro alguém com quem brincar ou jogar, a vontade de se aventurar fora da sua zona de conforto seria nula.

É fundamental que as crianças sejam respeitadas nas suas características e necessidades de tempo e espaço. Uma criança mais introvertida não deve ser forçada a integrar atividades ou situações nas quais não se sente à vontade”.

No entanto, Vera Lisa Barroso salienta que a vontade de fazer novas amizades não está forçosamente associada à ausência de um amigo, “pelo contrário, a presença deste poderá até promover mais segurança, confiança e por isso potenciar a vontade de alargar o grupo de férias". Tal como explica a psicóloga, fazer novas amizades (ou, mais especificamente, o “à-vontade” para o fazer) “prende-se mais com a confiança pessoal e competências interpessoais, qualidades e aptidões que não se reduzem ao tempo de férias, mas se verificam nos diferentes contextos e momentos ao longo do ano”.

Maioritariamente, são os jovens adolescentes que manifestam mais o desejo de levar consigo um amigo nas férias, “pois estão numa fase de desenvolvimento de maior autonomia e desejo de emancipação face aos pais, mais entusiasmados com a possibilidade de experimentar situações novas e momentos emocionalmente intensos, vividos com os pares”, afirma a especialista, que recorda que, por outro lado, as crianças mais pequenas “estão ainda numa fase de maior dependência e necessidade de cuidado e presença dos progenitores”.

Caso a criança não tenha o desejo de convidar um amigo para esta ocasião especial ou mesmo que, como pai ou mãe, decida não o fazer, com vista a incutir mais à-vontade no seu filho para fazer novas amizades, saiba que não o deve forçar a fazer algo fora da sua natureza. Como explica Vera Lisa Barroso, “é fundamental que as crianças sejam respeitadas nas suas características e necessidades de tempo e espaço. Uma criança mais introvertida não deve ser forçada a integrar atividades ou situações nas quais não se sente à vontade”.

Contudo, mesmo que a criança esteja rodeada de adultos, é importante que esta não seja deixada à mercê de equipamentos eletrónicos como consolas ou smartphones — por mais que este cenário seja apelativo e desejado pelos miúdos. “O tempo de férias é um tempo especial para família, amigos ou pessoas com quem escolhemos estar, é o momento ideal para negociar a ausência de tecnologia e promover mais convívio, presença, conversa, partilha, respeitando as características individuais de cada um”, salienta a especialista, que acredita que apostar na motivação, estimulação e apelo à curiosidade dos mais jovens (sobretudo dos mais fechados ou mais voltados para si) é mais proveitoso e saudável do que impôr-lhes programas de verão ou interações forçadas.

Levar outra criança nas férias é uma responsabilidade acrescida para os adultos

Apesar de a ideia de levar um colega ou amigo mais próximo nas férias parecer um sonho para muitas crianças, a verdade é que a realidade pode ser bem diferente. Afinal, por mais próximos que os amigos sejam, uma convivência diária por um período de tempo contínuo (seja uma, duas semanas ou até mais dias) pode revelar-se um desafio.

“É uma oportunidade para desenvolver capacidades como flexibilidade, cedências, aceitar, partilhar, contribuir, sendo à partida uma ótima altura para treinar estas competências”, afirma a psicóloga, embora reconheça que uma presença diária e mais intensa “pode conduzir a algumas tensões ou conflitos, uma vez que os jovens poderão entrar em contacto com facetas dos seus amigos que não conheciam, e vice-versa”. Mesmo assim, Vera Lisa Barroso acredita que os eventuais conflitos e tensões das crianças ou adolescentes “poderão ser aproveitados para adaptar as suas formas de estar, pelo menos enquanto partilham o mesmo espaço”.

Para além deste desafio na convivência entre os mais jovens, os adultos também se deparam com cenários mais complexos de gerir, sendo responsáveis, durante um determinado período de tempo, por uma criança que não é sua filha.

A psicóloga clínica reconhece que esta é uma responsabilidade acrescida, mas acredita que esta “deve ser partilhada, em parte, com os filhos. Sobretudo quando já são mais velhos, deve existir um apoio em termos de ajuda com as tarefas, determinação de regras e limites, alertando para a responsabilidade que os jovens devem ter pelos seus comportamentos e escolhas, a importância do voto de confiança que lhes está a ser depositado e, eventualmente, a existência de consequências previamente definidas no caso de incumprimento de determinadas regras e limites”.

Para que os adultos consigam incutir regras nos jovens, principalmente naqueles que não fazem parte do seu agregado familiar e que possam reger-se por outras diretrizes nas suas casas, Vera Lisa Barroso recomenda que se negoceie “determinados deveres para conseguir determinados direitos e explicitar que estes poderão ser posteriormente alterados, de acordo com o uso (ou abuso) que os jovens fazem. Tudo deve ser explicado, negociado e previamente definido.”