Yann Lafarge cresceu em Paris nos anos 80 com três canais de televisão. Lembra-se da publicidade imparável, das séries dobradas, em que a mesma voz servia para Will Smith, Bruce Willis e Tom Cruise. Esse é um passado longínquo. Hoje a realidade mostra-se completamente diferente e o francês não só não contabiliza os canais como é o responsável pela Technology and Corporate Communications do serviço de streaming que chegou há quase três anos a Portugal. Pretexto para uma conversa no hotel The Lumiares, em Lisboa, sobre tudo o que mudou.

E mudou muita coisa. Da indústria até à forma como consumimos séries, da pirataria até à liberdade de podermos ver conteúdos em qualquer parte. Até o que vemos está diferente — hoje somos tão fanáticos por produções americanas como espanholas, alemãs ou dinamarquesas. E porque não é todos os dias que podemos pôr um rosto na Netflix, aproveitámos ainda para falar das novas medidas anti-assédio e da discrepância salarial dos protagonistas de "The Crown".

A Netflix chegou há quase três anos a Portugal. Como é que o mercado tem evoluído?
O mercado está a ir muito bem, e penso que existem várias razões para isso. Agora temos um catálogo muito bom — desde que fizemos o lançamento em outubro de 2015, quintuplicou. Mas não é apenas uma questão de volume.

Como é que decidem o que é que entra no catálogo?
Quando chegamos a um novo mercado, trabalhamos com base em hipóteses. Pensamos: os portugueses provavelmente gostam de filmes de ação ou de comédia. E depois vemos — no primeiro ano que estamos no mercado, vamos recolhendo dados sobre o comportamento dos utilizadores.

“American Vandal”
“Ana com A”
“Riverdale”
“Ingovernável”
“Greenleaf”
“As Telefonistas”
“A Névoa”
“O Atirador”
“Por Treze Razões”
“Marvel – o Punho de Ferro”

O primeiro ano é determinante, portanto. 
Quando no início atraímos as pessoas, e apresentamos-lhe uma oferta que não é forte o suficiente, perdemo-las. É certo e sabido. E é tão fácil para eles deixarem-nos, um clique e já está. Temos que ter a certeza que o conteúdo que temos é de facto bom, e capaz de atrair e manter as pessoas connosco. E acho que chegámos lá em termos de catálogo, tanto ao nível das licenças como do esforço incrível que tem sido feito no sentido de produzir conteúdo próprio. Este ano vamos investir 6,9 mil milhões de euros em novos conteúdos — e isto traduz-se em originais da Netflix, co-produções e licenças.

Na máquina do café ou num jantar com amigos, não se fala do que deu na televisão na terça-feira à noite. Não, fala-se de “Narcos”, no novo documentário da Netflix."

E como é que estão a evoluir os utilizadores da Netflix?
No início tínhamos pessoas que se calhar eram um pouco mais experientes em tecnologia, jovens urbanos, que falavam inglês.

Já não é assim?
Bem, ainda os temos. Mas temos outros. Os jovens urbanos que falam inglês começam a falar com os amigos, com a família, se calhar até ajudam a mãe ou a avó: “Mãe, estás sempre a ver televisão e a levar com anúncios, deixa-me instalar o Chrome Cast ou fazer login no teu tablet”.

A Netflix expande-se a todas as gerações?
A Netflix é muito fácil de manusear, no entanto algumas pessoas continuam a pensar que é muito tecnológico. Portanto, trabalhamos bastante na parte educacional. Temos de enfatizar as vantagens para o consumidor. E acho que temos feito um bom trabalho nesse sentido. Depois de atingirmos as massas, e continuarmos a adicionar conteúdo que chega às notícias e cria boca a boca, é um círculo. Na máquina do café ou num jantar com amigos, não se fala do que deu na televisão na terça-feira à noite. Não, fala-se de “Narcos”, no novo documentário da Netflix. É nesse momento que as pessoas estão a fazer o trabalho por nós. E chegámos lá, estamos num ponto em que há pessoas suficientes que são apaixonadas pela marca e que são os nossos relações públicas.

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Chegámos a um ponto em que as pessoas dizem: “Eu queria ver, mas não está na Netflix”.
Sim. É engraçado. Às vezes compramos a licença de conteúdos que funcionaram, digamos, razoavelmente nos canais nacionais. Quando chegam à Netflix, há três, quatro, cinco vezes mais telespectadores. "La Casa de Papel" é um exemplo disso.

Correu bem na televisão nacional, mas só foi um grande sucesso quando chegou à Netflix.
Na Netflix tornou-se um fenómeno global, foi de loucos. É a série de língua não inglesa mais bem-sucedida na Netflix. Na Arábia Saudita, tivemos um estádio inteiro com máscaras de Dalí a cantar "Bella Ciao". É de loucos! Em todas as partes do mundo. E nós temos a oportunidade de divulgar estes conteúdos, que vêm de todas as partes do mundo (não apenas de Hollywood), transcendem fronteiras e têm grandes histórias. Isso é incrível.

“The Crown”
“Uma Série de Desgraças”
“Big Mouth”
“Desajustados”
“Neo Yokio”
“Eu, Tu e Ela”
“Fronteira”
“Wet Hot American Summer: Dez Anos Depois”
“Ozark”
“Um Dia de Cada Vez”

Neste momento a Netflix está a investir bastante na Europa. Em Portugal continuamos a ter um único exclusivo, o stand-up comedy de Salvador Martinha, lançado em 2016.
Neste momento, a maioria dos subscritores da Netflix vive fora dos Estados Unidos da América. E essa percentagem vai continuar a aumentar — do Chile à Noruega, da Irlanda à Indonésia. Acreditamos, e não é cínico da nossa parte pensar assim porque temos provas disso, que boas histórias podem vir de qualquer parte do mundo. Portanto, nós temos de encontrar esses incríveis contadores de histórias, onde quer que eles estejam, e dar-lhes liberdade para contarem as suas histórias. Na Europa, neste momento, estamos a filmar em 16 países. É muito. 100 títulos europeus vão chegar à Netflix em 2018. Vão chegar muitos mais em 2019. Na forma como vemos as coisas, não se trata de um conteúdo original italiano ou espanhol. Quando decidimos financiar um projeto, não se trata de agradar os italianos ou os alemães, porque a maior parte da audiência vai estar fora do país. Olhemos para o exemplo de "Dark": a maior parte dos telespectadores não era alemã. E a Alemanha é um país grande, com milhões de subscritores.

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Portanto não se trata de ter um conteúdo exclusivo de um país, tudo se resume à história.
Não temos métricas ou diretrizes internas que nos fazem dizer que no próximo ano temos de ter duas séries suecas ou uma portuguesa. Resume-se tudo à história e à oportunidade. E às vezes demora o seu tempo criar confiança com uma comunidade de argumentistas. França, por exemplo, é um dos maiores produtores de conteúdos do mundo. Ora, neste momento lançámos "Marcella", e há duas semanas um documentário realmente incrível sobre os atentados de Paris, "13 de Novembro: Terror em Paris".

Eu cresci em Paris nos anos 80. Tinha três canais. Em 1986 acrescentaram mais um canal. Tínhamos sempre de levar com imensa publicidade, as séries eram dobradas, a mesma pessoa fazia a voz de Will Smith, Bruce Willis e Tom Cruise."

É um documentário incrível.
Incrível. É muito emocional. Há duas semanas estive no visionamento com as vítimas, e foi catártico [suspiro]. Foi mesmo muito intenso. Senti-me muito orgulhoso que a Netflix desse a oportunidade aos realizadores Gédéon e Jules Naudet de fazer isto. Mas voltando atrás, em França, apesar de serem grandes produtores de conteúdos, demorou algum tempo. Agora temos cinco ou seis títulos para sair. "The Rain", por exemplo, é uma série pós-apocalíptica dinamarquesa. A Dinamarca é um país pequeno. Ninguém fala dinamarquês, e nós estivemos cinco meses a gravar lá. Neste momento, nos EUA, as audiências são tão elevadas como algumas dessas grandes séries que passam na televisão nacional, como "The Walking Dead". As audiências são semelhantes. E isso é incrível. Mesmo "The Crown". A BBC não conseguiria criar isto.

E como é que isto funciona? Como é que se apresentam histórias à Netflix?
Tradicionalmente as pessoas têm agentes, agentes que são referências para nós e que sabem onde encontrar-nos.

Quantos guiões é que recebem?
Centenas, é de loucos. Só este ano vamos lançar mil títulos. Mil. Só de produção própria, porque temos muito mais em licenças. Vamos ter a sequela de "Bright", com Will Smith, "The Irishman", de Scorsese. Todos os dias fazemos um anúncio novo. É muito excitante, vivemos uma era de ouro na televisão. Por apenas nove euros, que são praticamente dois cafés numa zona turística, ganha acesso a conteúdos ilimitados. Eu cresci em Paris nos anos 80. Tinha três canais. Em 1986 acrescentaram mais um canal. Tínhamos sempre de levar com imensa publicidade, as séries eram dobradas, a mesma pessoa fazia a voz de Will Smith, Bruce Willis e Tom Cruise, e era extremamente confuso. Era o que era.

Hoje é completamente diferente.
Quando de manhã estávamos a voar para aqui, eu estava a assistir a uma série no meu tablet. Depois faltavam-me apenas cinco minutos para terminar e assisti ao resto no meu telemóvel, na viagem de Uber.

A Netflix conseguiu mudar a pirataria?
Não fazemos estudos internos sobre isso, mas sabemos que nos países nórdicos, Canadá e Austrália, agências independentes analisaram a nossa presença no mercado e concluíram que a pirataria diminuiu entre 20 a 30%. Não é algo que promovamos, mas é um facto. É ótimo. E sabe, é algo extremamente difícil de alcançar, porque nós temos de ser melhor do que o gratuito. E nós somos, nós somos melhor do que o gratuito. Porquê? Porque pode assistir em todos os dispositivos, não se resume ao computador, não há publicidade, tem legendas na sua língua, a qualidade da imagem é melhor. E os conteúdos ficam disponíveis para toda a gente ao mesmo tempo. Quando cresci nos anos 80, senti-me muitas vezes um cidadão de segunda: tinha de esperar três ou quatro anos para que um grande título chegasse dos EUA, e às vezes nunca chegava. Já não é assim.

Como é que a Netflix utiliza os dados que recolhe dos utilizadores para criar novos conteúdos?
Há muitos mitos em torno disso — o algoritmo que é capaz de criar uma história, coisas assim. Esqueça isso. O nosso vice-presidente em inovação do produto ouve essa pergunta muitas vezes. Ele está na casa dos 50 e responde: "Isso não vai acontecer enquanto eu for vivo". Robots a contar histórias, o que quer que seja, não, não vai acontecer. Há duas coisas importantes em relação à forma como utilizamos os dados. Em primeiro lugar aquilo que falámos no início, de quando chegámos a Portugal e não sabíamos o que é que as pessoas gostavam. Com o tempo vamos vendo os gostos do consumidor e ajustamo-nos. Percebemos que temos de ser mais fortes em dramas, conteúdos para os miúdos ou ficção científica, ou o que quer que seja. A segunda coisa é que os dados recolhidos ajudam-nos a pôr o preço certo num determinado conteúdo, tanto naquele que licenciamos como naquele que criamos.

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É por isso que o catálogo está sempre a mudar.
Há conteúdos a entrar e conteúdos a sair. Na maioria são conteúdos que entram para o catálogo. Mas imagine que temos, por exemplo, um dos filmes do "Batman". Comprámos a licença à Warner Bros por dois anos. Ao fim desses dois anos, analisamos a eficiência do título. Entretanto chega um concorrente, a Amazon ou a HBO, que diz que paga três milhões pelo filme (nós pagámos um milhão). E nós dizemos: achamos que o valor real são 700 mil. Ou dois milhões, o que quer que seja. Estamos dispostos a pagar mais? Temos de avaliar. Às vezes aparecem nos media notícias a dizer que nós perdemos este ou aquele título. Nem sempre é uma questão de perder. É porque nós sabemos...

... que não vale isso.
Não é uma questão de não valer, tem o seu valor, mas não é sustentável para nós. E nem sempre é fácil para o consumidor perceber porque é que, por exemplo, já não tem o filme do "Batman" disponível. Há muitas razões para isso: competição, acordos que são fechados por cinco anos, por exemplo. É também por isso que quando chegamos a um novo mercado, às vezes deparamo-nos com direitos que estão fechados por uma série de anos.

A regra dos cinco segundos foi alvo de gozo. Ninguém vai ser despedido por olhar sete segundos para um colega. No entanto, olhar insistentemente para alguém é um problema."

Aconteceu isso com "House of Cards" quando a Netflix chegou a Portugal.
Sim, por exemplo. E é preciso esperar que os direitos expirem para negociar. Há sempre esta dinâmica nestas coisas. A mesma coisa com as séries que são canceladas: às vezes gastamos demasiado dinheiro num conteúdo que as pessoas não veem. Não quer dizer que ele não seja ótimo, ou aclamado pela crítica. Ele pode ser incrível, mas no final é uma questão de sustentabilidade. Temos uma taxa pequena de cancelamentos, mas algumas coisas não pegam. E está tudo bem, faz parte. Se não está a funcionar, matamos a série e investimos o dinheiro noutra coisa de que as pessoas gostem mais. Às vezes temos grandes surpresas, como aconteceu com "The End of the Fucking World", "Stranger Things" ou "La Casa de Papel". Sabíamos que tínhamos ali qualquer coisa, mas não um fenómeno global como foi o que acabou por acontecer.

Falemos sobre as novas medidas anti-assédio da Netflix. Algumas criaram alguma polémica, como por exemplo não poder olhar para um colega mais de cinco segundos. Isto é tudo verdade?
O que é verdade é isto: na sequência do movimento #metoo, nós fomos impactados de formas diferentes com alguns dos atores, e estamos muito conscientes deste problema. Vamos lançar mil conteúdos este ano, portanto queremos ter a certeza que temos ambientes seguros nos sets. Queremos ter a certeza que todas as pessoas, homens ou mulheres (pode afetar qualquer pessoa), sentem que estão seguras e num ambiente protegido. Pusemos uma formação nos sets, por recomendação, para enfrentar estes problemas. A regra dos cinco segundos foi alvo de gozo. Ninguém vai ser despedido por olhar sete segundos para um colega. No entanto, olhar insistentemente para alguém é um problema. Pessoalmente fiquei aborrecido que um tablóide gozasse com isto. É trivializar um problema que é grande e real, e não tem piada. Isto é uma coisa boa para toda a gente, e não deve ser alvo de chacota.

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Porque o assédio é um problema real.
Tudo o que pudermos fazer para ajudar as pessoas a sentirem-se seguras... É senso comum, mas dizer estas coisas em voz alta pode ajudar muita gente. Há milhares de pessoas envolvidas no movimento #metoo, não apenas em Hollywood. Agora as pessoas estão mais conscientes do problema, e isso é bom. Estamos a ir na direção certa. Na Netflix temos uma política de tolerância zero, e levamos este assunto muito a sério. Mas no set é diferente, geralmente são produções externas. "House of Cards" por exemplo é uma produção da Sony. Às vezes há terceiras partes envolvidas. Temos de ter a certeza que estão a seguir algumas regras, mas não estamos a controlar diretamente as coisas. E as coisas podem acontecer.

Até que ponto é que vocês se envolvem?
Depende muito. Temos o exemplo de "Star Trek", que é uma co-produção com a CBS. Há muitas coisas híbridas. Mas aquilo que estamos a tentar fazer é que, quando a Netflix está de alguma forma envolvida num projeto, há um código de boa conduta, elementos que ajudam as pessoas a sentirem-se seguras. Se calhar vamos mudar as regras no futuro, não sei, ainda estamos a começar. Por agora arrancámos com "The Crown" e "Black Mirror", mas a ideia é aplicar isto em mais conteúdos.

Os homens continuam a ganhar mais do que as mulheres. Qual é a opinião da Netflix sobre isto?
Temos o caso de "The Crown", mas esse é um pouco especial. Nesse caso específico, quando comissionámos a série há dois anos, Matt Smith era conhecido, era o protagonista de "Doctor Who", enquanto Claire Foy era relativamente conhecida. Havia uma lógica nesse momento para que um ganhasse mais do que o outro.

Mas é a Netflix quem define os salários?
Não, são os produtores. É a decisão deles pagar o que quiserem. Voltando a Claire Foy, ela tornou-se muito conhecida, ganhou um Globo de Ouro e é incrível. Neste momento faz todo o sentido que a rainha ganhe tanto como o rei, e em futuras temporadas vai ser assim.

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