Estava numa estrada a caminhar em grupo. Não sabia de onde vinha, mas a intuição e o contexto diziam-lhe que poderia ser de um campo de trabalho. Havia pessoas à volta e estavam cansadas. Dava-lhe a impressão de serem judeus. Também havia soldados, mas estes pareciam alemães. Afinal não. Alguém lhe disse que eram americanos e que vieram para os libertar. Do bosque, surgiram crianças ciganas, que sussurraram:"Não vás por aí, eles querem-te matar." Ficou confusa: ia com as crianças esquisitas sem pais ou com os soldados que pareciam alemães, mas que afinal eram americanos? Escolheu a segunda hipótese e foi encaminhada para uma espécie de metro. É agora que se dá o twist. Numa espécie de zoom out, percebeu que aquela carruagem era afinal uma bala e que todos estavam dentro dela. Conseguiam ver pelo cano da arma do soldado que a segurava que a guerra ainda decorria. Se houvesse um disparo morriam. E acordou.

Esta foi uma das histórias que Linda Koncz viveu a dormir. A Segunda Guerra Mundial é um sonho recorrente, talvez por ter crescido na Hungria, mas também porque a melhor amiga da avó, com quem conversou muito quando era pequena, foi uma das sobreviventes do campo de concentração de Auschwitz.

"O cinema e cultura afetam-nos o subconsciente e os sonhos. Na Hungria fazem-se muitos filmes sobre a Segunda Guerra, que tem muito peso na nossa história. É a forma de, culturalmente, se digerir o problema, acho", diz à MAGG.

A húngara de 33 anos vive hoje em Lisboa e é uma das fundadoras do projeto Dreampire, que consiste em gravar o sonho das pessoas que vai conhecendo para depois os disponibilizar no site [criado por Erika Kapronczai, a responsável por esta parte do projeto], que por enquanto funciona na forma de um arquivo de sonhos, mas que pretende transformar-se numa espécie de rede social em que as pessoas podem partilhar e conectar-se através daquilo que vão sonhado. Ainda assim, já é possível pesquisar temas através de tags.

"A ideia foi plantada quando tinha 18 anos. Eu e o meu namorado [András Muhi] comentávamos muito aquilo com que tínhamos sonhado. Quando acordávamos, perguntávamos e partilhávamos, sempre que houvesse", conta. "As histórias eram sempre tão interessantes. Lembro-me que comentámos que seria ótimo se pudéssemos registar os nossos sonhos para mais tarde podermos lê-los ou que seria mais giro até podermos ver-nos, por causa das expressões que fazíamos quando os estávamos a relatar."

O sonho pode ser uma espécie de mensagem que o subconsciente envia ao consciente. Fazemos mal se não abrirmos o envelope porque, no fundo, estamos a comunicar connosco. Temos de nos ouvir."

Apesar de a ideia ter nascido em 2002, só em 2011 é que Linda, que também trabalha como videógrafa freelancer, gravou o primeiro sonho. Durante o interregno, estudou, em Budapeste, para ser crítica de cinema, mas percebeu que, mais do que avaliar o trabalho dos outros, lhe interessava afinal o lado prático desta arte. Foi assim que, já com a relação terminada, se mudou para Londres para se dedicar, então, às câmaras, guiões e programas de edição.

Em 2011, Linda foi estudar para a Kingston University em London, no curso de Film Making

"Comecei a gravar sonhos de colegas quando comecei a aprender a mexer na câmara", conta. "Eu e o meu ex-namorado sempre mantivemos contacto e, na altura, contei-lhe que tinha posto a nossa ideia em prática. Ele ficou entusiasmado e disse que seria ótimo se arranjássemos financiamento."

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Sete anos depois do arranque oficial, o projeto já têm 3000 testemunhos gravados, de diferentes países, desde França, Alemanha, Hungria, Eslováquia, Brasil, Indonésia ou Índia. Em 2015 conseguiram investimento (de um outro produtor húngaro que financiava projetos culturais) que permitiu que a Dreampire nascesse e que Linda pudesse, finalmente, transformar-se numa espécie de caçadora de sonhos profissional.

Hitler, Indiana Jones e Michael Jackson

Porquê gravar os sonhos dos outros? "Tenho muitos amigos com trabalhos monótonos, como condutor de autocarro ou operador de call center, que têm sonhos tão criativos. No fundo, mostra que todos somos artistas e não sabemos."

Mas há mais motivos. "Estudei tanto sobre o tema, li tanto sobre psicologia e antropologia, que comecei a encontrar outros pontos de interesse. Ouvi um psicólogo [Andrew Feldmár] muito famoso húngaro dizer [na inauguração de uma exposição de sonhos, em Budapeste] uma ideia muito simples, mas que resume bem aquele que pode ser o ponto mais importante: o sonho pode ser uma espécie de mensagem que o subconsciente envia ao consciente. Fazemos mal se não abrirmos o envelope porque, no fundo, estamos a comunicar connosco. Temos de nos ouvir."

Acho que os sonhos devem fazer parte de estudos de cultura porque quando símbolos deste género [Indiana Jones, Hitler ou McDonald's, por exemplo] nos aparecem quando dormimos provam que se tornaram parte de uma espécie cânone cultural"

Foi, recentemente, aceite num doutoramento na Universidade Católica Portuguesa, mas ainda está à espera de saber se vai receber uma bolsa da Faculdade de Ciências e da Tecnologia. O objetivo, além do desenvolvimento do site e de competências para estruturar e organizar a informação recolhida, passará por explorar mais aprofundadamente alguns padrões culturais que foi reconhecendo à medida que foi ouvindo os sonhos de milhares de pessoas, fazendo a ponte com o cinema.

"Como também estudei cinema, percebi que a estrutura de um filme pode ser muito parecida com a de um sonho. Quero analisar como é que os filmes afetam aquilo com que sonhamos. Nos relatos, as pessoas referem momentos de suspense ou em que há um zoom in ou até um jump cut. Quero analisar detalhadamente isto. Li muitos dos sonhos que o Freud descreveu dos pacientes e não notei estas características cinematográficas, portanto quero perceber se no passado já sonhávamos assim e não tínhamos estas palavras ou se, de facto, o cinema afeta o nosso cérebro ao ponto de sonharmos como se estivéssemos num filme."

De acordo com Linda, há vários símbolos culturais recorrentes nos sonhos. Na análise de tudo o que já recolheu, notou que as figuras que mais surgem nas histórias de quem dorme são o Hitler, o Michael Jackson e o Indiana Jones. Também nota o aparecimento de vários símbolos como do Starbucks ou McDonald's.

"Acho que os sonhos devem fazer parte de estudos de cultura porque quando símbolos deste género [Indiana Jones, Hitler ou McDonald's, por exemplo] nos aparecem quando dormimos provam que se tornaram parte de uma espécie de cânone cultural. Tornaram-se história à medida que entraram no nosso subconsciente. Acho que é socialmente relevante saber o que é que nos afeta tão profundamente."

Sonha-se igual em todo o mundo?

Há algumas nuances, de acordo com o país e, por conseguinte, a cultura. Em Portugal, Linda nota que se sonha muito com o Hitler (e não com Salazar, como referiu) e com aquilo que está relacionado com a água. Na Hungria, as pessoas conversam muito nos sonhos e são capazes de fixar os diálogos. Na Indonésia, surgem deuses. Em Londres, os ingleses passam tempo ao computador e ao telemóvel, até enquanto dormem.

Ainda assim, há sonhos recorrentes, comuns a todas as partes do mundo, tais como "voar, ser perseguido, dar à luz ou perder dentes". Também já ouviu coisas muito estranhas. "Um ator contou-me que, num dos seus sonhos, estava excitado, então tirou a cabeça e fez sexo oral a si próprio", relata. "Também já ouvi uma miúda que ficou muito perturbada depois de ter sonhado que tinha sexo com a avó."

Uma miúda, que tinha uma espécie de loja de aluguer de DVD, contou-me que sonhou que o espaço tinha ardido. No dia seguinte foi o que aconteceu. Depois disso ficou com medo que os seus sonhos se tornassem realidade."

Não é psicóloga, sublinha, mas, em conversa com as pessoas, acaba por encontrar uma possível causa para as histórias. Neste último caso, "a avó era a pessoa no topo da hierarquia da família e a miúda tinha acabado de arranjar trabalho, portanto, sendo o sexo um símbolo de poder, poderia estar relacionado com isto, porque ela estava no caminho da sua independência."

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Aqueles de que mais gosta, no entanto, são os "sonhos proféticos", aqueles que se ouvem menos. "Uma miúda, que tinha uma espécie de loja de aluguer de DVD, contou-me que sonhou que o espaço tinha ardido. No dia seguinte foi o que aconteceu. Depois disso, ficou com medo que os seus sonhos se tornassem realidade."

Quem são as pessoas que relatam os seus sonhos?

Não há um critério e qualquer pessoa pode relatar um ou vários sonhos seus. A ideia é que seja o mais abrangente possível, com pessoas de diferentes idades e nacionalidades.

Começou por gravar, sobretudo, pessoas na faixa etária entre os 20 e os 40. Vinha para festivais (incluindo o Boom, em Portugal, ou Berlin Film Festival, em Berlim) e aí recolhia testemunhos. Também se associava a galerias de arte e, em inaugurações, ia ouvir os sonhos dos outros.

"Quando vim para Portugal entrei num projeto no LX Factory, em que artistas escolhiam um sonho para se inspirarem e fazerem uma obra", recorda. Mas aquilo que é comum é conhecer pessoas, seja através de amigos de amigos, ou porque vai, por exemplo, para um parque e, aí, aborda pessoas. Às vezes contam, outras vezes não, ou porque não se lembram de nenhum, ou porque não se sentem à vontade com a câmara, ou porque são episódios demasiado íntimos para exporem. Mas, garante, Lisboa é uma das melhores cidades para se dedicar ao seu projeto e esse foi o principal motivo que a fez querer ficar cá permanentemente.

"Por causa do turismo, também tenho imensos sonhos de espanhóis ou italianos", diz.

Com o desejo de ouvir tanto pessoas mais novas como mais velhas, Linda visitou, por exemplo, uma escola e recolheu sonhos de crianças."É engraçado porque sonham quase sempre com o filme que viram na noite anterior." Também esteve num lar de idosos e nota que aquilo com que os mais velhos sonham resulta muito de uma mistura de histórias do passado com a imaginação. "Quando relatam, é difícil distinguir aquilo que já é uma história real do sonho".

Os vídeos são simples: planos próximos das caras das pessoas. Não é por acaso. A imagem é sempre esta, por dois motivos: primeiro, porque serve para manter a coerência dos filmes, uma vez que "seria impossível levar toda a gente para um estúdio." Depois, porque há um foco na expressão. "Uma senhora contou que tinha sonhado que tinha comido um muffin, que não era só de chocolate e que também tinha creme. Ela tinha muito peso e, quando relatou, viu-se na expressão dela, de vergonha, que a relação com a comida devia ser uma das suas maiores batalhas."

Linda, a caçadora de sonhos, não decora nomes, mas decora as histórias de quem dorme. "Quando reconheço alguém na rua, não é pelo nome, mas por aquilo com que sonhou."

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