Foram quase cinco anos a ignorar o óbvio. Serenah e Hendi sabiam que já não eram só amigos, mas o peso de uma Palestina em conflito é tal, que até eles já duvidavam se algum dia dariam o passo em frente. Mas deram, nem que para isso tenham sido obrigados a passar fronteiras feitas de religião.

Serenah é cristã, Hendi é muçulmano, mas atrás desses rótulos pesados há uma história que podia passar-se aqui, ali ou em qualquer filme de domingo à tarde. Em 2008, Serenah, na altura com 15 anos, costumava ir com as amigas ver uns filmes à escola de cinema onde Hendi trabalhava como produtor. Conheceram-se, ficaram amigos e estenderam esse rótulo o mais possível, não só porque Hendi era dez anos mais velho, como pratica uma religião que põe fim à possibilidade de algum dia serem mais do que isso. Pelo menos na Palestina.

De tal forma se sentiam sufocados que só depois de atravessarem fronteiras para território seguro tiveram coragem de contar a quem deixaram para trás. “Não culpo os meus pais. Aliás, tomara muitos ter a família incrível que eu tenho”, admite Serenah. Mas Hendi completa: “O problema é a sociedade, que põe uma pressão tão grande que, mesmo que as nossas famílias nos aceitassem enquanto casal, nunca poderiam ser livres para o admitir”.

Finalmente a paz (ou quase)

Nota-se no olhar destes dois a adrenalina de quem está a ver crescer um negócio que lhes vai dar dinheiro, como é óbvio, mas principalmente uma terra que possam chamar de casa. “Para mim esse conceito já mudou”, diz Hendi, “casa continua a ser a terra onde nasci, a minha família, os meus amigos, mas é principalmente o sítio onde me sinto feliz”.

Esse sítio é agora Lisboa, onde já como casal sem medo de dizer que o é, abriram a Zaytouna, uma mercearia de produtos do Médio Oriente, no número 19 do Mercado de Arroios. Foi na verdade a forma que arranjaram de juntar as duas casas de que Hendi falava. "Assim, ainda que longe, tenho aqui o meu país".

Zaytouna, o nome escolhido para a mercearia, significa azeitona em português

Falam sem arrependimentos sobre a fuga para ser feliz e nem quando trabalhava 16 horas por dia na construção civil, Hendi pensou que estaria melhor na Palestina. Isto porque, antes de Lisboa, passaram uns três penosos anos na Bélgica, para onde foram inicialmente, contando com a rede de amigos que, tal como eles, procuraram fora aquilo que não encontravam em casa: liberdade. Mas como é que é mesmo aquela frase que nos fica das aulas de filosofia? “A minha liberdade começa quando acaba a tua”, não é? Pois bem, a de Serenah e Hendi estava constantemente a ser interrompida, sem que por isso, tivesse continuidade para alguém. Não lhes era concedido um visto, nem o estatuto de refugiado. Hendi não conseguia um trabalho bem pago nem Serenah podia voltar a estudar. E convenhamos, não conseguiam viver num país com tão poucos dias de sol como a Bélgica. “Passei o meu primeiro ano doente, deprimida e à espera que o Hendi chegasse a casa completamente negro, tal era a sujidade do trabalho”.

E mesmo assim, continuava a valer a pena. Continuavam era a querer — e a merecer — mais. Começaram a procurar novo destino, com uma certeza em mente, tinha que ter sol. “Estávamos entre Portugal e Espanha, mas apaixonamo-nos por Lisboa assim que vimos as imagens da cidade na internet”.

Por cá estão desde 2016, de tal forma integrados que já têm mil histórias para contar sobre o flagelo de arrendar casa em Lisboa. “Até agora, já mudámos 12 vezes”, conta Serenah.

Uma mercearia que é casa

Ainda que ter um negócio já os faça respirar de alívio, a história não acabou. A lei portuguesa tem meandros complicados que exigem que para trabalhar no país a pessoa tenha que estar legalizado, mas para estar legalizado é preciso ter um trabalho. “É uma pescadinha de rabo na boca”, como diz Catarina Morais, que interrompe a conversa para explicar o quão difícil está a ser integrar Serenah e Hendi em Portugal. Conheceram-se porque Catarina é voluntária na Refugees Welcome Portugal, uma associação que trabalha no sentido de melhor receber quem nos procura como asilo. “Pediram-me aulas de português e eu tentei, mas revelei-me uma péssima professora”, brinca. “Em compensação, é nossa amiga, mãe, irmã e, agora, até empresária”. Foi Catarina que decidiu arriscar e ajudar o casal a montar o negócio, de forma a facilitar o processo de integração dos dois. “Querem pessoas mais integradas na comunidade do que eles? Vivem aqui, montaram um negócio e adoram Portugal”, resume. “Adoramos mesmo”, reforça Hendi, sem ter que olhar para Serenah para saber que o sentimento é dos dois. “E é por isso que vos queremos mostrar aquilo que é nosso”.

Há produtos nesta mercearia que dificilmente encontra noutro lado. Só especiarias há mais de trinta variedades

Quando trabalhou no Mezze, restaurante duas portas ao lado e no qual a comida é feita e servida por refugiados sírios, Serenah percebeu que havia um interesse dos clientes em saber como podiam replicar os pratos em casa. A essa procura dos outros juntou a vontade que tinha de voltar a ter disponíveis os ingredientes que fazem a comida com a qual cresceu.

Assim que souberam que havia lojas no Mercado de Arroios à espera de serem ocupadas, desafiou Hendi a abrirem uma mercearia onde agora é possível encontrar o essencial da comida do Médio Oriente.

Morada: Mercado de Arroios, Rua Ângela Pinto, loja 19

Horário: terça a sexta 10h-19h; sábado 10h-15h

Telefone: 926 369 317

Vão buscar os produtos a países europeus onde a comunidade árabe é maior e trazem para Lisboa o que até aqui não existia. “Não é que não haja tahini [pasta de sésamo] ou bulgur em Portugal, mas, por exemplo, a pasta de tamarindo ou as yalanji [folhas de videira para rechear] não são assim tão fáceis de encontrar”, garante Hendi. Por aqui há ainda mais de 30 variedades na prateleira das especiarias, preparados para falafel, tâmaras, pickles, café e até latas de húmus [paté de grão] para os mais preguiçosos. Para os outros, deixamos aqui a receita, dada em primeira mão por quem sabe. “Definitivamente, o Hendi. Eu só como”, brinca Serenah. O grão deve ser comprado seco, demolhado durante a noite e passado por água antes de cozer. Depois de cozido, mistura-se numa trituradora com um pouco de água da cozedura, tahini, sumo de limão, sal, azeite e – talvez aqui esteja o truque – cubos de gelo que, palavras do mestre, “ajudam a dar uma textura mais cremosa”. No final, azeite, cominhos e coentros.

Se testar em casa, vá lá contar o resultado. Eles adoram dar dicas gastronómicas e, com sorte, vem de lá com a receita do babaganoush (nós viemos, mas essa não contamos a ninguém).