Imagine viver num mundo em que é constantemente avaliado pelos outros pelas escolhas que faz. Onde uma situação de dívida ou uma crítica aberta ao governo se traduzem em pontuações negativas num sistema informático. Agora imagine que essas classificações o remetem, automaticamente, para uma lista negra — fica impedido de comprar casa, contrair empréstimos ou viajar de comboio e avião.

É um episódio de "Black MIrror", mas é também a nova realidade dos cidadãos chineses que se veem constantemente controlados por uma aplicação, associada a todos os telemóveis, que avalia o seu nível de honra consoante as escolhas que fazem e as relações que mantêm. Os outros utilizadores podem dar-lhes notas e em situações de dívidas o próprio governo pontua. É o chamado sistema de "crédito social" criado pelo Presidente Xi Jinping que entrará em pleno funcionamento em Maio, segundo noticiou a Reuters.

O episódio da terceira temporada da série conta a história de Lacie. Uma mulher de classe média-alta cuja sociedade onde se insere atribui papéis aos cidadãos através de um sistema de pontuações.

Utilizadores com pontuações elevadas têm acesso a todo o tipo de luxos e regalias. Os restantes vivem na miséria, na infelicidade, e na irrelevância. Lacie começa com uma pontuação alta que, com o decorrer do episódio, vai descendo até não conseguir atingir o mínimo aceitável — conduzindo-a à exclusão da elite social a que pertencia.

Na China o sistema funciona de forma semelhante. Foi em 2014 que o governo chinês implementou um serviço que guarda a informação pessoal de todos os utilizadores desta aplicação móvel de maneira a avaliar a reputação de cada um. Desde o cidadão de classe baixa ao detentor dos mais altos cargos do governo.

A aplicação censura e ostraciza cidadãos com pontuações baixas

O registo geral combina a situação financeira do utilizador com outras componentes pessoais. A forma como se relaciona com os outros, as ações de caridade em que está envolvido, e a sua relevância na sociedade. Tudo isso são elementos usados para gerar uma pontuação final que tem de estar entre 350 e 950 pontos, e que depois pode ou não impedir o acesso a vários tipos de conteúdos e serviços.

Exemplo disso é Liu Hu, jornalista chinês que em 2013 acusou Ma Zhengqi, vice-diretor da Administração da Indústria e do Comércio na China, de corrupção e desvio de capital. O jornalista foi detido, acusado de difamação e ainda hoje aguarda julgamento. Ao jornal "The Telegraph" conta que devido ao processo em que está envolvido, é considerado um cidadão de segunda classe.A baixa pontuação impedia-o de usar hotéis de luxo, comprar certos eletrodomésticos, ou reservar os melhores lugares em comboios.

Mas agora o sistema foi atualizado, entrará em vigor em maio, e utilizadores com pontuações muito baixas estão proibidos de usar aviões e comboios.

Esta é uma ideia que está em linha com a maxima de Xi Jinping: cidadão que se revele uma vez não confiável, deve para sempre ser ostracizado. Mas o serviço permite que os utilizadores voltem às boas graças do governo — podem doar sangue, contribuir para a sociedade através de ações de solidariedade ou até mesmo evitar relacionar-se com utilizadores com pontuações mais baixas.

O caso da China vem provar que "Black Mirror" não é um simples produto de entretenimento, já que avança hipóteses sobre o futuro e de como a tecnologia o poderá influenciar. Assiste-se, no fundo, a uma espécie de Instagram, com os seus "gostos" e comentários, aplicado à vida real. Só que com consequências graves e verdadeiras.